Bob Woodward, jornalista americano que descobriu o escândalo sobre o Watergate, está publicando livro sobre bastidores do governo Trump| Foto: MANDEL NGANAFP

John Dowd estava convencido de que o presidente Donald Trump cometeria perjúrio se falasse com o conselheiro especial Robert Mueller. Então, em 27 de janeiro, o então advogado pessoal do presidente organizou uma sessão de perguntas e respostas para expor seu ponto de vista.

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Na Casa Branca, Dowd crivou Trump com perguntas relacionadas à investigação sobre a suposta interferência da Rússia nas eleições de 2014, provocando tropeções, contradições e mentiras até que o presidente acabou perdendo a calma. "Isto é um maldito engano", disse um Trump estourado no início de 30 minutos de reclamações, que terminaram com ele dizendo: “Eu realmente não quero testemunhar.” 

A cena dramática e inédita é relatada em "Fear (Medo, em português)", um livro de Bob Woodward que apresenta um retrato angustiante da presidência Trump, baseado em entrevistas em profundidade feitas com funcionários do governo e outros altos integrantes. 

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Woodward – um dos jornalistas que descobriu o caso Watergate, que resultou na renúncia do presidente Richard Nixon, em agosto de 1974 – descreve a ira e paranóia de Trump sobre a investigação na Rússia como implacável, às vezes paralisando a Ala Oeste da Casa Branca – onde está localizado o gabinete presidencial - por dias. Ao inteirar-se sobre a nomeação de Mueller, em maio de 2017, Trump reclamou: "Todo mundo está tentando me pegar". Foi parte de um período de desabafo em que os assessores se desanimaram, assim como nos últimos dias de Nixon como presidente. 

Uma cópia do livro de 448 páginas foi obtida pelo Washington Post. Woodward, um editor associado do jornal, tentou entrevistar Trump contatando vários intermediários. Mas não foi bem sucedido. O presidente ligou para Woodward no início de agosto, depois que o manuscrito foi concluído, para dizer que ele queria participar. O presidente americanp disse que seria um "livro ruim", de acordo com uma gravação de áudio da conversa. Woodward respondeu que seu livro seria "duro", mas factual e baseado em suas reportagens. 

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Um tema central do livro são as maquinações furtivas usadas por aqueles que estão no círculo íntimo de Trump para tentar controlar seus impulsos e prevenir desastres, tanto para o presidente quanto para o país para qual foi eleito para liderar. 

Woodward descreve "um golpe de estado administrativo" e um "colapso nervoso" do poder executivo, com assessores experientes conspirando para arrancar documentos oficiais da mesa Mais de uma vez, Woodward conta em detalhes como a equipe de segurança nacional de Trump foi abalada por sua falta de curiosidade e conhecimento sobre assuntos mundiais e seu desprezo pelas principais perspectivas das lideranças militares e de inteligência. 

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Em uma reunião do Conselho de Segurança Nacional, em 19 de janeiro, Trump ignorou a importância da presença militar maciça dos EUA na Peninsula Coreana, incluindo uma operação especial de inteligência que permite aos Estados Unidos detectar um lançamento de míssil norte-coreano em sete segundos (contra 15 minutos no Alasca), de acordo com Woodward. Trump questionou por que o governo estava gastando recursos na região. "Estamos fazendo isso para evitar a Terceira Guerra Mundial", disse Jim Mattis, secretário da Defesa. 

Depois que Trump saiu da reunião, Woodward relata: "Mattis ficou particularmente exasperado e alarmado, e disse a colaboradores próximos que o presidente agia e tinha o conhecimento de um aluno de quinta ou sexta série.” 

Segundo Woodward, muitos dos principais conselheiros ficaram desconcertados pelas ações de Trump e expressaram os pontos fracos dele. "Os secretários de defesa nem sempre escolhem o presidente para o qual trabalham", disse Mattis a amigos em determinado momento, o que provocou risadas ao explicar a tendência de Trump em se concentrar em assuntos como imigração e a mídia. 

Dentro da Casa Branca, Woodward retrata um executivo instável, separado dos padrões do governo e propenso a criticar os funcionários de alto escalão, a quem perturbava e menosprezava diariamente. 

Perda de paciência e insultos

O chefe de gabinete da Casa Branca, John Kelly, frequentemente perdeu a paciência e disse aos colegas que achava que o presidente estava "desequilibrado", escreve Woodward. Em uma reunião com um pequeno grupo, Kelly disse sobre Trump: "Ele é um idiota. É inútil tentar convencê-lo de qualquer coisa. Ele saiu dos trilhos. Estamos em Crazytown. Nem sei porque estamos aqui. Este é o pior trabalho que tive.” 

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John Kelly, chege de gabinete da Casa Branca, ouve Donald Trump conversar com dissidentes norte-coreanos, em fevereiro 

Reince Priebus, o antecessor de Kelly, se queixou de que não podia fazer muito para impedir que Trump desencadeasse o caos. Woodward escreve que Priebus apelidou o quarto presidencial, onde Trump obsessivamente vê notícias na TV por assinatura e tuita, de o “escritório do diabo” e disse que os domingos de manhã e de noite, quando o presidente gosta de fazer tweetstorms, eram a hora das bruxas. 

Trump aparentemente tinha pouca consideração com Priebus. Certa vez, ele instruiu o então secretário da equipe, Rob Porter, a ignorar Priebus. Trump dizia que Priebus era "como um pequeno rato. Ele apenas corre ao redor". 

Poucos, no círculo próximo de Trump estavam protegidos dos insultos do presidente. Muitas vezes ridicularizava o ex-assessor de segurança nacional H.R. McMaster pelas costas, estufando o peito e exagerando na respiração enquanto se fazia passar pelo general aposentado do Exército. Certa vez disse que McMaster se vestia com ternos baratos, "como um vendedor de cerveja". 

Trump disse ao secretário de Comércio, Wilbur Ross, um rico investidor oito anos mais velho do que o presidente: "Não confio em você. Não quero que você faça mais negociações... Você passou do seu auge." 

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Alvos frequentes

Um alvo quase constante dos ataques presidenciais é o procurador-geral Jeff Sessions. Trump disse a Porter que Sessions era um "traidor" por ter-se recusado a supervisionar a investigação sobre a interferência russa nas eleições de 2016, escreve Woodward. Imitando o sotaque de Sessions, Trump acrescentou: "Esse cara é mentalmente retardado. É um sulista idiota ... Nem sequer poderia ser um advogado de uma só pessoa no Alabama.”  

Promotor-geral Jeff Sessions participa de reunião com Trump em março 

Em um jantar com Mattis e com o general Joseph F. Dunford Jr, chefe do Estado Maior Conjunto, Trump atacou um crítico frequente, o recém-falecido senador John McCain. O presidente falsamente sugeriu que o ex-piloto da Marinha tinha sido um covarde por ter sido libertado prematuramente de um campo de prisioneiros de guerra no Vietnã por causa do alto cargo militar de seu pai e por deixar outros para trás. 

Mattis corrigiu rapidamente seu chefe: "Não, senhor presidente, acho que se enganou". O secretário de Defesa explicou que McCain havia de fato recusado a liberação antecipada e foi brutalmente torturado durante seus cinco anos no Hilton Hanoi, o campo onde foi preso. 

"Oh, tudo bem", respondeu o presidente americano, de acordo com o relato de Woodward. 

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Com a raiva e o desafio de Trump impossíveis de conter, os membros do gabinete e outros funcionários de alto escalão passaram a agir discretamente. Woodward descreve uma aliança entre aliados tradicionais de Trump - incluindo Mattis e Gary Cohn, ex-principal assessor econômico do presidente - para impedir o que consideravam atos perigosos. 

"Parecia que estávamos andando ao longo da borda do penhasco continuamente", disse Porter. 

Depois que o líder sírio Bashar al-Assad lançou um ataque químico contra civis em abril de 2017, Trump ligou para Mattis e disse que queria matar o ditador. "Vamos matá-lo!m disse o presidente, de acordo com o relato de Woodward. 

Mattis disse ao presidente que ele estaria certo. Mas, depois de desligar o telefone, disse a um assessor sênior: "Não vamos fazer nada disso. Vamos ser muito mais comedidos". A equipe de segurança nacional desenvolveu opções para o ataque aéreo convencional que Trump ordenou. 

Tentativa de conter o nacionalismo estridente

Cohn, um veterano de Wall Street, tentou conter o nacionalismo estridente de Trump em relação ao comércio. Segundo Woodward, Cohn "roubou uma carta da mesa de Trump" que o presidente estava pretendendo assinar para retirar formalmente os Estados Unidos de um acordo comercial com a Coréia do Sul. 

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Ele depois disse a um assessor que ele havia tirado a carta para proteger a segurança nacional e que Trump não percebeu que estava faltando. 

Cohn adotou uma estratégia similar para impedir que Trump retirasse os Estados Unidos do Nafta, algo que o presidente vem ameaçando. Na primavera de 2017, o presidente estava ansioso para se sair do Nafta e disse a Porter: "Por que não estamos fazendo isso? Faça o seu trabalho. É tocar, tocar, tocar adiante. Quero fazer isso.” 

Sob ordens do presidente, Porter redigiu uma carta de notificação para tirar os Estados Unidos do Nafta. Mas ele e outros consultores temiam que isso pudesse desencadear uma crise econômica e de relações internacionais. Então Porter consultou Cohn, que lhe disse, de acordo com Woodward: "Eu posso parar com isso. Vou tirar o papel da mesa dele". 

Apesar das repetidas ameaças de Trump, os Estados Unidos permaneceram em ambos os acordos comerciais. O governo continua a negociar novos termos com a Coréia do Sul, assim como com o Canadá e o México. 

Cohn chegou a considerar o presidente como "um mentiroso profissional" e ameaçou renunciar em agosto de 2017 por causa da manipulação de Trump de uma manifestação de supremacia branca em Charlottesville. Cohn, que é judeu, ficou muito abalado quando uma de suas filhas encontrou uma suástica em seu dormitório na universidade. 

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Gary Cohn, chefe dos assesores econômicos, durante uma entrevista coletiva em setembro de 2017 

Trump foi duramente criticado por inicialmente dizer que "os dois lados" eram os culpados. Diante da insistência dos conselheiros, ele condenou os supremacistas brancos e neonazistas. Mas, quase imediatamente, disse aos assessores: "esse foi o maior erro que cometi" e o "pior discurso que já dei", segundo o relato de Woodward.. 

Quando Cohn se reuniu com Trump para entregar sua carta de renúncia após o episódio de Charlottesville, o presidente lhe disse: "Isto é traição", e convenceu seu assessor econômico a continuar. Kelly então confidenciou a Cohn que compartilhava seu horror sobre a forma como Trump lidou com a tragédia - e compartilhou a fúria de Cohn com Trump. 

Woodward mostra como o medo no entorno de Trump tornou-se amplo ao longo do primeiro ano de mandato. Membros da equipe e do gabinete ficaram confusos pela falta de compreensão do presidente sobre como o governo funciona e sobre sua incapacidade e falta de vontade em apreender. 

Certo momento, Porter, que renunciou em fevereiro em meio a alegações de abuso doméstico, foi citado dizendo: "Isto não era mais uma presidência. Isto não é mais uma Casa Branca. Este é um homem sendo quem ele é". 

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Tais momentos de pânico são uma característica rotineira. O livro de Woodward se concentra principalmente em decisões substantivas e divergências internas, incluindo as tensões com a Coréia do Norte, bem como o futuro da política americana para o Afeganistão. 

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Woodward relata repetidos episódios de ansiedade no governo americano, relacionados à forma como Trump lida com a ameaça nuclear norte-coreana. Um mês depois de tomar posse pediu a Dunford um plano para um ataque militar preventivo à Coréia do Norte. Isto abalou o veterano de combate. 

No outono de 2017, quando Trump intensificou uma guerra de palavras contra Kim Jong Un, apelidando o ditador norte-coreano de "Little Rocket Man" em um discurso nas Nações Unidas, os assessores temeram que o presidente estivesse provocando Kim. Mas, segundo Woodward, o presidente americano disse a Porter que via a situação como uma disputa de vontades: "Tudo isto é líder contra líder. Homem contra homem. Eu contra Kim". 

O livro também detalha a impaciência de Trump em relação à guerra no Afeganistão, que se tornou o conflito mais longo dos Estados. Em uma reunião do Conselho de Segurança Nacional de julho de 2017, reclamou durante 25 minutos, a seus generais e assessores, que os Estados Unidos estavam perdendo, de acordo com Woodward. 

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"Os soldados podem gerenciar a situação melhor do que vocês", disse Trump. "Poderiam fazer um trabalho muito melhor. Não sei o que diabos estamos fazendo." Logo, passou a questiobar: "Quantas mortes a mais? Por mais quanto tempo estaremos lá?" 

Os membros da família do presidente, embora, às vezes apontados como seus principais assessores por outras pessoas que acompanham o presidente, tem um papel menor, de acordo com Woodward. Eles aparecem ocasionalmente onde está o gabinete presidencial, incomodando os adversários. 

Discussões com membros da família 

Woodward relata uma discussão cheia de palavras pesadas entre Ivanka Trump, a filha mais velha do presidente e conselheira sênior, e Stephen K. Bannon, o ex-estrategista-chefe da Casa Branca. "Você é uma maldita integrante da equipe!", gritou o então estrategista-chefe, dizendo que ela tinha de trabalhar com Priebus, assim como outros assessores. "Você anda por este lugar e age como se estivesse no comando, e você não está. Você está na equipe!" 

Ivanka Trump e Jared Kushner, seu marido, participam de uma reunião do gabinete na Casa Branca, em março 

Ivanka Trump, que tem acesso especial ao presidente e trabalhava com Priebus, respondeu: "Eu não sou um funcionária! Eu nunca serei um funcionária. Eu sou a primeira filha". 

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As tensões ferviam entre muitos dos principais conselheiros de Trump. Priebus é citado por descrever os funcionários de Trump não como rivais, mas como "predadores naturais". 

"Quando você coloca uma cobra, um rato, um falcão, um coelho e um tubarão em um zoológico sem paredes, as coisas começam a ficar desagradáveis e sangrentas", diz Priebus. 

Testemunha

O livro relata vividamente o debate em curso entre Trump e seus advogados sobre se o presidente seria ouvido por Mueller. Em 5 de março, o advogado de Dowd e Trump, Jay Sekulow, reuniu-se com o promotor especial e seu adjunto, James Quarles, onde reencenaram a sessão de perguntas e respostas com o presidente americano. 

Dowd então explicou a Mueller e Quarles por que estava tentando evitar que o presidente testemunhasse: "Não vou sentar lá e deixá-lo parecer um idiota. E daí você publica essa transcrição, porque tudo vaza em Washington, e as pessoas no exterior vão dizer: eu te disse que era um idiota. Porque estamos lidando com esse idiota?" 

"John, eu entendo", Mueller respondeu, de acordo com Woodward. 

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Mais tarde naquele mês, Dowd disse a Trump: "Não testemunhe. É isto ou um macacão laranja (referindo-se à cor do uniforme que os presidiários americanos usam)." 

 Mas Trump, preocupado com a possibilidade de um presidente se recusar a testemunhar e convencido de que poderia lidar com as perguntas de Mueller, já tinha decidido o contrário. "Serei uma boa testemunha", disse Trump a Dowd, segundo Woodward. 

"Você não é uma boa testemunha", respondeu Dowd. "Senhor presidente, tenho medo de não poder ajudá-lo." Na manhã seguinte, Dowd se demitiu.