O ex-primeiro-ministro do Quirguistão, Sapar Isakov, (ao centro atrás) e outros ex-funcionários acusados de corrupção relacionada ao contrato da usina de energia concedida à empresa chinesa TBEA, em julgamento em Bishkek, Quirguistão, 3 de abril de 2019| Foto: Maxime Fossat / The New York Times

As autoridades quirguizes sabiam que não podiam mais adiar a decisão; a usina responsável por praticamente todo o aquecimento e a eletricidade da capital do país estava no fim de sua vida útil.

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Durante o processo de análise das propostas de reconstrução, chegaram ao Ministério de Energia e ao de Relações Exteriores cartas da embaixada chinesa em Bishkek, "recomendando" fortemente uma empresa chinesa chamada TBEA por ser "a única em condições de executar" o projeto, que custaria centenas de milhões de dólares.

Claro que era muito mais que uma recomendação; os chineses estavam acenando com a perspectiva de um empréstimo ao Quirguistão, essa nação da Ásia Central com 6,2 milhões de habitantes, mas deixaram bem claro que a companhia que apoiavam teria de ser escolhida. Certas de que não tinham outra opção, as autoridades optaram pela TBEA, empresa com ambições grandiosas, mas com experiência modesta na construção e reparo de hidrelétricas.

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A decisão tomada em 2013, que preteriu uma companhia russa muito mais experimentada, levou a um desastre: no ano passado, logo depois de a obra ter sido concluída, a usina entrou em colapso, deixando a maior parte de Bishkek sem aquecimento nem eletricidade em temperaturas congelantes.

A revolta pública e o julgamento que se desenrola em Bishkek expuseram as práticas comerciais chinesas e a corrupção local à análise minuciosa da imprensa e dos políticos durante meses. O escândalo também destaca o movimento verdadeiramente tectônico que ocorre na economia e na geopolítica da Ásia Central, uma região vasta de desertos, estepes e montanhas e rica em recursos naturais que, durante séculos, foi vista pela Rússia como seu quintal.

Momentos antes da abertura, policiais impedem o acesso à sala do tribunal onde está sendo realizado um julgamento contra o ex-primeiro-ministro Sapar Isakov, do Quirguistão, em Bishkek, Quirguistão, em 3 de abril de 2019. Pequim está usando seu poderio financeiro para expandir sua influência, erodindo séculos de domínio russo em uma vasta região rica em recursos
O ex-primeiro-ministro do Quirguistão, Sapar Isakov, (ao centro atrás) e outros ex-funcionários acusados de corrupção relacionada ao contrato da usina de energia concedida à empresa chinesa TBEA, em julgamento em Bishkek, Quirguistão, 3 de abril de 2019
Uma parada de ônibus marcada por rochas em uma rodovia inacabada que deveria ter sido construída por uma empresa chinesa, no Quirguistão, em 3 de abril de 2019
Uma placa sobre uma rodovia no Quirguistão promove amizade e cooperação econômica entre o país e a China, no Quirguistão, 3 de abril de 2019
Nurlan Ormulkul, ex-chefe da usina que foi processado por negligência pelas autoridades quirguizes, em Bishkek, Quirguistão, em 26 de março de 2019

Trégua fria

Rivais ferrenhos durante a era soviética que travaram um conflito fronteiriço perigoso em 1969, Rússia e China estabeleceram uma espécie de trégua fria nas décadas subsequentes. Ultimamente, porém, as duas nações deram grandes demonstrações de que estão se aproximando estratégica e comercialmente, em uma relação estimulada basicamente pelas tensões com os EUA e seus aliados.

Em junho, o líder chinês, Xi Jinping, e o homem que ele recentemente descreveu como seu "melhor amigo", o russo Vladimir Putin, trocaram sorrisos e comentários sarcásticos sobre os norte-americanos durante viagens à Ásia Central. Ambos participaram no Quirguistão de uma reunião da Organização de Cooperação de Xangai, cúpula estabelecida pela China, e depois voltaram a se encontrar no vizinho Tajiquistão, onde Putin deu sorvete de presente de aniversário ao chinês.

Porém, apesar do estreitamento dos laços, uma rivalidade profunda permanece entre os dois antigos adversários, exposta justamente por esse caso.

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"Há uma disputa feia, mas oculta, entre Rússia e China, pela influência na Ásia Central. No nosso caso, o apoio é maior aos russos, porque geralmente o povo fala a mesma língua; além disso, o pessoal aqui vai para Moscou para trabalhar ou estudar, por exemplo. O problema é que quem tem dinheiro são os chineses", explica Rasul Umbetaliev, quirguiz especialista em energia e ex-funcionário público.

E é esse mesmo poder econômico que está no centro do julgamento de um ex-primeiro-ministro quirguiz, Sapar Isakov, e outras autoridades acusadas de corrupção no caso do contrato da TBEA. Segundo os promotores, licitações fraudadas e preços inflados custarão ao Quirguistão US$ 111 milhões.

Isakov insiste em dizer que não há nada inapropriado em relação ao contrato, e que nem ele nem qualquer outro oficial selecionou a empresa chinesa. "A opção foi feita pelo governo da RPC. Era seu direito, já que foi quem financiou o projeto de modernização", afirmou, referindo-se à República Popular da China, em declaração recente na prisão.

O anúncio revela o raro reconhecimento de uma pessoa com acesso a informações privilegiadas de que a China, com as maiores reservas cambiais do mundo, tem uma vantagem no exterior que serve a seus interesses comerciais, independentemente do que a população local pensa ou o que os adversários têm a oferecer.

Contrato a portas fechadas

Uma comissão criada pelo Parlamento quirguiz descobriu inúmeras irregularidades na concessão e na execução do contrato. A TBEA não foi escolhida depois de uma licitação aberta e competitiva, mas por meio de uma análise feita a portas fechadas de ofertas submetidas por um punhado de empresas que, de alguma forma, souberam que o contrato estaria disponível.

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Para Iskhak Masaliev, oposicionista que integra a comissão parlamentar, a rival russa da TBEA, a Inter RAO, nem chegou a ser cogitada. "O projeto já começou fedendo, mas, se não tivesse acontecido nenhum acidente, ninguém teria notado", declara.

Xiao Qinghua, ex-embaixador chinês no Quirguistão, afirmou à imprensa daquele país que a TBEA foi selecionada porque era uma empresa "respeitável, com uma reputação mundial muito boa". Entretanto, recusou-se a comentar as conclusões das investigações.

"Não podemos interferir. Respeitamos a soberania quirguiz", resumiu. A sede chinesa da TBEA não respondeu aos nossos inúmeros pedidos de comentário.

O fiasco da hidrelétrica, os problemas persistentes de uma refinaria com verba chinesa e a revolta quirguiz em relação à opressão chinesa aos uigures, que também são muçulmanos, contiveram as ambições de Pequim, pelo menos temporariamente.

Entretanto, a Rússia tem dificuldade para competir no que se tornou a nova versão do Grande Jogo, disputa que travou, no século XIX, com a Grã-Bretanha pela Ásia Central. Mencionando a "situação econômica desfavorável" russa e sua incapacidade de fornecer as verbas prometidas, o Quirguistão, em 2016, suspendeu o acordo que permitia às empresas daquele país construir uma série de represas e hidrelétricas no norte de seu território.

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Segurança x infraestrutura

É verdade que a Rússia ainda tem imensas reservas de boa vontade nas antigas repúblicas soviéticas e permanece como peça dominante na segurança da região. Em visita ao Quirguistão, em março, Putin garantiu um acordo para expandir a base aérea que suas forças militares usam desde a era soviética – mas, quando se trata de construir estradas, refinarias e usinas, os chineses os deixam no chinelo.

A Ásia Central é parte crucial da Iniciativa do Cinturão e Rota, a política estratégica desenvolvida pelo governo de Xi, que anunciou o gigantesco programa de infraestrutura em visita ao Cazaquistão, em setembro de 2013. Dias depois, o chinês viajou ao vizinho Quirguistão e disse às autoridades em Bishkek que o Export-Import Bank of China poderia financiar a reconstrução da usina de eletricidade e aquecimento já envelhecida da capital.

Os empréstimos bancários ao Quirguistão, que eram só de US$ 9 milhões em 2008, explodiram, indo para mais de US$ 1,7 bilhão. Algumas estimativas jogam os projetos financiados pelos chineses a US$ 2,2 bilhões, ou seja, quase um terço do valor do desempenho econômico anual quirguiz.

A intervenção de Xi transformou a usina de Bishkek em um teste inicial da sua iniciativa. Ansiosa porque os oficiais quirguizes se mostravam lentos, a embaixada chinesa lhes deu um cutucão, em novembro de 2013, para que o projeto fosse iniciado, repetindo insistentemente que a TBEA fizesse o trabalho e enfatizando que aquela era "a posição final do lado chinês".

E, segundo carta que enviou ao Ministério de Minas e Energia do Quirguistão, "a oferta de empréstimo foi um dos resultados fundamentais da primeira visita do chefe de Estado chinês e deu um significado importante ao desenvolvimento de um projeto de energia vital para a economia nacional". A construção começou logo depois.

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Nurlan Omurkul, que era o diretor da usina, afirma que tinha sérias dúvidas sobre a decisão de contratar uma empresa sem experiência nenhuma nesse tipo de obra, mas que fora "convencido" por autoridades superiores a acatar a decisão que efetivamente já tinha sido tomada. "Só ficavam me dizendo que eu concordasse e pronto", revela.

Omurkul foi demitido após o colapso do ano passado, acusado de negligência e condenado em junho a quatro anos de prisão. Em entrevista anterior à sentença, ele disse que o caso contra si e outros especialistas técnicos era uma cortina de fumaça para esconder a corrupção de autoridades do alto escalão.

"Trabalhei a vida inteira com hidrelétricas e sabia de cara que os US$ 386 milhões que os chineses pediam eram excessivos", revela.

O Quirguistão vai pagar cerca de US$ 470 milhões em vinte anos, incluindo juros e correção monetária.

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