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Novo coronavírus se aproxima da marca de 1 milhão de infectados no mundo: busca pela cura é desafio para a ciência.
Novo coronavírus se aproxima da marca de 1 milhão de infectados no mundo: busca pela cura é desafio para a ciência.| Foto: Divulgação/Sesa

A nova dinâmica da comunicação coletiva informatizada é, ao mesmo tempo, inspiradora (pela possibilidade de engajamento instantâneo em debates interessantes) e desafiadora (pelo problema da polarização não mediada pessoalmente, em que a distância física entre os interlocutores reduz a inibição psicológica, permitindo conversas tanto mais francas quanto menos cordiais).Foi o que ocorreu numa recente conversa em um grupo de WhatsApp. Após uma postagem sobre a adoção do uso preventivo da hidroxicloroquina para o tratamento do coronavírus (Covid-19) pelo Instituto de Ciências Médicas da Índia, um profissional da área médica, integrante de uma das instituições de saúde mais respeitadas do país, manifestou-se com aparente dissabor: “tomara que seja fake news”.

A afirmação incomodou. Espera-se de qualquer cientista, se não a postura da dúvida radical que decorre da noção do abstrato possível (que trata das possibilidades racionalmente inimagináveis), ao menos o respeito que advém da ideia de dúvida científica (que trata da noção de que a ciência não é um destino, é um processo). No caso concreto, supõe-se que uma manifestação mais coerente estaria mais próxima da ideia de investigação: “preciso conferir os dados indianos, ver se descobriram algo que não percebemos”.

Retornando à conversa no aplicativo, a situação piorou um pouco. Após uma provocação sobre o fato de uma autoridade pública na área de saúde ter se recusado a responder sobre o uso da hidroxicloroquina no seu próprio tratamento, o debatedor retrucou: “você é amigo dele? Não? Eu sou. Sei que não usou a cloroquina”. É incrível, mas – em pleno século 21! – o debate escorregou para o argumento de autoridade “por amizade”. Assim, em vez de operar dentro do paradigma procedimental científico (observar, teorizar e testar), parece melhor desejar que a notícia seja fake news, ou ainda pior, fazer uso de falácias lógicas.

Aparentemente, a ciência deixou de ser um sistema organizado de construção de perguntas e respostas para ser, de um lado, um espaço de verdades incontestáveis; e, de outro, o cantinho da vergonha dos “negacionistas”, compreendido como todo aquele que discorda daquilo que o mainstream afirma estar correto. Nessa lógica, o argumento não tem valor em si, pois depende da posição de poder do interlocutor. Aparentemente, é esse o estado da arte da “ciência” contemporânea. É triste a constatação de que vivemos uma época de “polarização científica”, na qual os argumentos estão muito mais na política do que na ciência. Sim, a política permeia todo o espectro da vida, inclusive a ciência. O tema, entretanto, envolve debater qual seria a relação razoável entre as diversas influências que afetam o debate científico, não de supor uma “ciência pura”, uma ideia tão utópica quanto equivocada.

Seria bom que a ciência tivesse feito descobertas positivas sobre qualquer tratamento que possa salvar vidas. Ao que parece, a hidroxicloroquina que não foi “cientificamente testada” é, tal qual o país de origem da pandemia, aquele cujo nome não pode ser proferido, um tipo potteriano de controle linguístico – o equivalente linguístico do Voldemort da obra de J.K. Rowling. Nessa lógica, se o medicamento foi politizado, o correto é torcer para a derrota do desafeto político, independentemente do custo, especialmente porque a elite (econômica, acadêmica, burocrática e social) tem condições de arcar com os custos da alternativa profiláxica – o famoso “isolamento total”, uma espécie de quarentena social integral.

Neste ponto, para evitar críticas baseadas em outras falácias (o argumento ad hominem),preciso alertar: não me considero “negacionista”. Mudei meu escritório para casa, estamos todos da família em isolamento. Entretanto, ainda assim é necessário debater o tema, especialmente em face de uma aparente contradição no argumento sobre a validade científica da hidroxicloroquina. É que, salvo melhor juízo, um sistema de lockdown integral, no qual toda uma população é confinada sob os escrutínios do líder político regional (e sob as orientações de uma entidade internacional), também não foi “cientificamente testado”.

Em tese, a expressão “cientificamente testado” envolve uma tarefa de escrutínio em procedimentos de observação/hipótese/experimentação, levados a cabo por pesquisadores não relacionados, em um período de tempo consistente, com artigos publicados em revistas especializadas no sistema de peer review e recorrente confrontação dos resultados aferidos. Neste contexto, a validação do sistema de isolamento total pela OMS – o órgão político competente, mas que também já errou, e feio, no caso do coronavírus – formaliza uma hipótese científica plausível, mas jamais poderia ser encarada com um tipo de verdade transcendental. Do ponto de vista científico, a quarentena deveria ser tratada como hipótese em escrutínio perpétuo, inclusive no sentido de compreender a natureza e a necessidade das revoluções científicas.

Ademais, ainda que o sistema de isolamento total caracterizasse uma verdade transcendental, há particularidades que não podem ser desprezadas. O modelo implementado entre nós, por exemplo, não é verdadeiramente totalizador, já que exige (de alguns) o desrespeito ao sistema. Basta lembrar que é necessária a reposição dos produtos nas prateleiras dos supermercados e das farmácias, ou da entrega aos hospitais de insumos farmacêuticos. Assim, juntamente com as medidas de controle eletrônico da quarentena (há estados realizando o monitoramento de toda a população via celular, uma medida digna dos melhores regimes totalitários), talvez devêssemos pensar seriamente em outras hipóteses de profilaxia, lembrando dos caminhoneiros, policiais, bombeiros, médicos, repositores de mercadorias, balconistas e caixas de lojas, funcionários da limpeza pública e todos os outros que somam o risco pandêmico aos outros riscos diários que enfrentam na rotina brasileira de descaso social.

Bem verdade, nós que estamos em isolamento deveríamos não apenas melhor refletir sobre o método científico e sobre problemas e soluções possíveis. Devemos, principalmente, lembrar do Outro e agradecer ao exército de pessoas comuns que estão “autorizadas a contrair o vírus” – mantidos em uma situação de “irresponsabilidade pandêmica legalizada”, para evitar a maximização da catástrofe de saúde. Dito de forma explícita: se a sua despensa está cheia, lembre-se de que há outras pessoas que talvez não estejam em condições semelhantes.

Em suma, se a validade científica da hidroxicloroquina é questionável (e, de fato, é), tal argumento também é válido para o sistema de “isolamento total”. Sim, é difícil consertar o avião em voo, e erros são inevitáveis. Mas a hipótese de erro (e correção de curso) deveria valer para todas as outras hipóteses de protocolos e tratamentos indicados para a pandemia – e também para os outros desafios a serem enfrentados. Afinal, a catástrofe pandêmica não é o único dos desafios gestados pela crise mundial de saúde. O aumento da pobreza, subproduto inevitável do colapso da economia, também mata.

Por fim: para quem criticou governos anteriores pela realização de grandes eventos esportivos (em detrimento em investimentos em saúde em educação), cabe lembrar que neste país há um Poder Legislativo que não se opôs àqueles eventos, e agora decidiu que verbas destinadas para eleições não podem ser revestidas para a saúde. Afinal, não se fazem eleições com hospitais. Mas não se preocupem: o Estado, na expressão da perfectibilidade máxima dos distintos homens públicos, está aqui para nos proteger. É nosso grande irmão.

Assis José Couto do Nacimento é advogado, especialista em Direito Público, mestre em Direito Constitucional e autor de Constituição: o jurídico, o político e o discurso. A PEC 157/2003 e o debate sobre a tese da obesidade da Constituição.

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