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A família e a comunidade norte-americanas estão se desfazendo – as mortes por drogas e suicídios estão aumentando, o casamento e os lares com dois pais, diminuindo. É uma crise abrangente e complicada e, no entanto, alguns conservadores têm um alvo único e simplista para culpar: as elites liberais.

Basta sintonizar em qualquer talk show, ou abrir qualquer editorial de tendências direitistas, e lá você verá: a redução no número de casamentos e na taxa de natalidade nos EUA é culpa única e exclusiva das feministas formadas por Wesleyan em estudos femininos, que declaram que o casamento é arcaico e a maternidade, opressiva.

É a chamada Falácia de Lena Dunham. Baseada em uma vaga percepção da vida e do trabalho da criadora de Girls, ela afirma que o comportamento que vemos na HBO ou na vida de algumas estrelas de Hollywood é a norma em um espectro muito mais amplo de norte-americanos com educação superior. (Por que usar o nome de Dunham, cuja série acabou em 2017? Digamos que um estereótipo obsoleto merece uma denominação desatualizada.)

O verdadeiro cenário do casamento e da família nos EUA é bem diferente: de fato, as áreas e grupos demográficos em que Dunham deve ter menos fãs são aquelas em que o colapso do matrimônio é mais marcante. Enquanto isso, nas regiões do país onde a renda é mais alta e nos condados e cidades em que a proporção da educação superior é maior – os mesmos que ajudaram a devolver a maioria da Câmara aos democratas –, as pessoas estão vivendo uma vida bem tradicional, com famílias intactas e comunidades unidas.

É verdade que as mulheres com nível superior estão se casando mais tarde que seus pais

Meus conterrâneos conservadores, que têm toda a razão de lamentar o declínio da instituição do casamento e do índice de natalidade em nível nacional, têm de questionar por que a “América de verdade”, incluindo as áreas mais fervorosas da base de correligionários de Trump, está vendo a instituição familiar desmoronar.

Antigamente, as mulheres, com ou sem educação superior, costumavam se casar na mesma proporção: nos anos 60, cerca de 85% das mulheres de ambos os grupos se viam casadas aos 40. Hoje, ela corresponde a 65% das formadas e abaixo dos 50% das que nunca cursaram uma faculdade.

É verdade que as mulheres com nível superior estão se casando mais tarde que seus pais, detalhe que talvez reforce o estereótipo de Dunham – mas, ainda assim, estão se casando, enquanto que as integrantes da classe trabalhadora têm menos probabilidades de fazê-lo e chances mais altas de se divorciar. Os homens sem diploma universitário também se incluem nessa segunda alternativa.

Segundo o Centro de Pesquisas Pew, entre as que têm educação superior, 11% têm filhos fora do casamento; entre as que não têm essa formação, a proporção supera os 50%.

Talvez isso ocorra porque os adolescentes das famílias pobres – ou seja, aquelas cuja renda é inferior a US$ 30 mil por ano – não querem se casar. Em um estudo recente do Pew, menos de 30% consideram a instituição muito ou extremamente importante; nas famílias mais abastadas, o número chega a 56%. A diferença é mais ou menos a mesma em relação à valorização da paternidade/maternidade.

Rodrigo Constantino: Clima de guerra (publicado em 12 de março de 2019)

Leia também: A revolução industrial do julgamento alheio (artigo de Salvatore Scibona, publicado em 12 de março de 2019)

O que está por trás desse colapso da família tradicional na classe operária? Uma explicação puramente econômica não basta. Quando no auge, o fracking levou empregos bem remunerados às comunidades trabalhadoras com níveis matrimoniais já baixos, mas não se registrou nenhuma melhora ou aumento nesse quesito, de acordo com um estudo feito por Melissa Kearney, do Brookings Institution, e Riley Wilson, estudante de Ph.D. da Universidade de Maryland.

Ao mesmo tempo, lugares como Utah e Michigan Ocidental têm níveis matrimoniais sólidos, apesar de bem distantes das cidades costeiras das elites.

O que Utah e, digamos, a Virgínia do Norte têm em comum? Com certeza, não é a política nem os níveis de renda. Na verdade, em ambos os estados as instituições comunitárias são robustas, sejam ligas esportivas, escolas públicas sólidas ou igrejas vibrantes.

As áreas do meião do país, em dificuldades, não estão só vendo suas fábricas e minas de carvão fechando, mas também as igrejas, as associações de pais e mestres e organizações desportivas se esvaziando, a confiança social sendo minada. A pobreza não é o único flagelo nesses lugares; há também a questão do isolamento social.

Com a ausência do apoio comunitário, que torna a formação familiar mais viável e mais desejável, as famílias não se formam tanto. Praticamente todo mundo que tem filhos sabe do valor dos bairros coesos e das instituições comunitárias robustas.

Nos locais com mais capital social, a formação familiar é mais frequente

Os dados mostram que, nos locais com mais capital social, a formação familiar é mais frequente. Um estudo da Universidade de Michigan concluiu que “é mais provável encontrar um emprego ou um parceiro quando as mulheres estão envolvidas em redes diversificadas e abrangentes”.

Escolas públicas sólidas e boas bibliotecas fornecem aos pais meios de criar filhos educados e curiosos; comunidades religiosas fortes reforçam os valores e fornecem redes sociais para os pais. Até os campos esportivos oferecem grandes incentivos familiares: as ligas de adultos abrem espaço para as oportunidades de conhecer gente nova, e as juvenis facilitam a criação de jovens mais felizes e saudáveis.

Quanto melhor é um lugar para criar os filhos, mais pessoas seguirão essa tendência ali.

Dan Albrecht, um mecânico que conheci em Oostburg, cidadezinha construída à volta das igrejas reformadas holandesas no Wisconsin, me disse no balcão da lanchonete Judi’s: “O que aprecio nesta comunidade é que ela é superunida.” E elogiou as organizações comunitárias, principalmente as voltadas para as atividades juvenis. “O suporte aos nossos jovens é realmente incrível.”

Esse “nossos jovens” de Albrecht me impressionou, comprovando que a garotada não é responsabilidade só das respectivas famílias, mas de Oostburg como um todo.

Um relacionamento coeso e sólido com amigos e vizinhos, que pode ser legal quando se é solteiro e se tem vinte e poucos anos, se torna necessário quando se tenta conciliar filhos, casa e trabalho.

Nossas convicções: O valor da família

Leia também: Para recuperar a sociedade civil, cuidemos da biblioteca (artigo de Eric Klinenberg, publicado em 10 de setembro de 2018)

Em alguns aspectos, essa mensagem não deixa de ser extremamente conservadora: comunidades fortes e acolhedoras são essenciais para ajudar as pessoas a aproveitar ao máximo o que a vida oferece. O argumento deveria ser natural para conservadores e republicanos, mas, de umas décadas para cá, um traço superindividualista vem se espalhando pela direita. Lembra como o “Fui eu que construí” se tornou a resposta da vez entre os conservadores em 2012? Rick Santorum reagiu ao “É preciso uma vila” de Hillary Clinton com um livro, em 2005, It Takes a Family.

Entretanto, essa guinada hiperegocêntrica pode estar com os dias contados, pois, com a classe trabalhadora rural aderindo ao Partido Republicano, os conservadores estão cada vez mais atentos à formação familiar em declínio e ao esfacelamento das comunidades na maioria do país.

Aí está uma oportunidade rara de concordância entre direita-esquerda, a de que a melhor forma de promover o casamento e a família é construindo uma infraestrutura social que abra espaço para que ambos prosperem. O que é necessário para envolver os pais com as escolas locais? Como podemos erguer fisicamente comunidades que atraiam as pessoas, em vez de isolá-las?

O casamento é difícil; criar os filhos, mais ainda – mas essas metas se tornam mais viáveis quando contam com o apoio muito local e muito humano de instituições como escolas fortes, igrejas, associações esportivas e bairros coesos. Dá até para dizer que, para nutrir o casamento e facilitar a criação dos filhos, é necessária, sim, uma vila.

Timothy P. Carney é autor do livro ainda inédito “Alienated America: Why Some Places Thrive While Others Collapse”, membro visitante do American Enterprise Institute e editor de comentários do “Washington Examiner”.
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