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A biblioteca pública está obsoleta?

Muitas forças poderosas da sociedade parecem achar que sim. De uns anos para cá, o declínio na circulação de livros emprestados em algumas partes do país levou os críticos mais proeminentes a dizer que a instituição não cumpre mais sua função. Inúmeros políticos insistem em afirmar que, no século 21, quando há tantos livros digitais, tanta cultura pública disponível on-line e tanta ênfase na comunicação virtual, a biblioteca não precisa mais do apoio que já teve.

Acontece que ela necessita desesperadamente de recursos. Em algumas cidades, mesmo as mais ricas, como Atlanta, alas inteiras estão fechando. A unidade de San Jose, na Califórnia, pertinho das sedes do Facebook, Google e Apple, está tão apertada que os membros com débitos em aberto acima de US$ 10 não podem pegar mais livros ou usar os computadores.

O problema que ela enfrenta hoje não é a irrelevância; de fato, em Nova York e muitos outros centros, a circulação, participação em programas especiais e a média de permanência está aumentando. O verdadeiro desafio é que, com uma procura tão grande para os mais variados objetivos, o sistema e os funcionários estão sobrecarregados. De acordo com uma pesquisa de 2016 conduzida pelo Centro Pew, cerca de metade dos norte-americanos acima dos 16 anos usou a biblioteca pública no ano passado, e dois terços admitem que o fechamento da filial local teria “um grande impacto na comunidade”.

Pouquíssimas pessoas influentes compreendem o papel importante que a biblioteca desempenha nas comunidades modernas

Pois ela está sendo depreciada e negligenciada justamente no momento em que se mostra mais valorizada e necessária. Por que essa contradição? Em parte, porque o princípio básico que a rege – o que reza que toda pessoa merece acesso gratuito e irrestrito à nossa cultura e patrimônio comuns – está fora de sincronia com a lógica de mercado que domina o mundo. Além disso, pouquíssimas pessoas influentes compreendem o papel importante que a biblioteca desempenha nas comunidades modernas.

Ela é um exemplo do que chamo “infraestrutura social”, ou seja, os espaços e organizações físicos que ditam a interação entre as pessoas. A biblioteca não só oferece livre acesso aos livros e outros materiais culturais, mas também companhia para adultos mais velhos, creche para pais ocupados, escola de línguas para imigrantes e espaço público acolhedor para os pobres, sem-teto e jovens.

Não faz muito tempo que passei um ano fazendo pesquisa etnográfica nas bibliotecas de Nova York – e a todo momento era lembrado da importância que elas têm, não só pela vitalidade que injetam aos bairros, mas também por ajudar a encaminhar todo tipo de problema pessoal.

Para os mais velhos, principalmente os viúvos e os que vivem sozinhos, a biblioteca é local de cultura e companhia, na forma de clubes do livro, sessões de cinema, círculos de costura e aulas de arte, eventos atuais e computação. Para muitos, é o principal local de interação com membros de outras gerações.

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Para crianças e adolescentes, ajuda a instilar uma ética de responsabilidade, para si mesmos e os vizinhos, ensinando-os as implicações de emprestar e cuidar de algo público, além da devolução, de modo que os outros também possam desfrutar daquilo. Para os pais de primeira viagem, avós e cuidadores que se sentem sobrecarregados ao tomarem conta de um bebê/criança pequena sozinhos, a biblioteca é uma mão na roda.

Em muitas regiões, principalmente naquelas em que os jovens não estão entupidos de atividades curriculares pós-horário de aula, a instituição é muito popular entre adolescentes que querem passar o tempo entre gente da mesma idade. Uma, porque são abertas, acessíveis e gratuitas; outra, porque os funcionários os recebem bem. Há casos em que áreas inteiras são reservadas para os jovens terem um recinto só seu.

Para entender por que isso é importante, basta comparar o espaço social da biblioteca com o de estabelecimentos comerciais, como Starbucks ou McDonald’s – que são partes valiosas da infraestrutura social, mas não é todo mundo que tem condições de frequentar, e nem todo cliente, apesar de pagante, pode permanecer indefinidamente por lá.

Os mais velhos e mais pobres geralmente evitam o Starbucks porque, além de os preços serem proibitivos, eles se sentem como peixes fora d’água. Já os idosos que conheci na biblioteca de Nova York me disseram que se sentem ainda mais desconfortáveis nos novos cafés, restaurantes e bares tão comuns nos bairros gentrificados. Os membros das bibliotecas que são pobres e/ou em condição de rua nem sonham em entrar nesses lugares; sabem por experiência própria que o simples fato de ficar à porta de um estabelecimento refinado é o suficiente para fazer a gerência chamar a polícia. Entretanto, raramente se vê um policial na biblioteca.

A acessibilidade e a diversidade que florescem nas bibliotecas de bairro já foram um marco da cultura urbana, mas isso mudou

O que não significa que ela é sempre um lugar pacífico e sereno. Durante o tempo que passei fazendo minha pesquisa, testemunhei algumas discussões acaloradas, altercações físicas e outras situações desconfortáveis, às vezes envolvendo gente que parecia ter problemas mentais ou estar sob a influência de drogas. Porém, esses problemas são inevitáveis em uma instituição pública dedicada ao acesso livre, especialmente quando as clínicas, os abrigos, albergues e sopões quase sempre rejeitam – e mandam para a biblioteca! – os que mais precisam de ajuda. Incrível mesmo é a raridade com que esses problemas acontecem, a forma civilizada com que são resolvidos e a rapidez com que o bibliotecário restaura a ordem logo em seguida.

A acessibilidade e a diversidade que florescem nas bibliotecas de bairro já foram um marco da cultura urbana, mas isso mudou. Embora as cidades norte-americanas estejam crescendo em termos étnicos, raciais e culturais, quase sempre se mantêm divididas e desiguais, com alguns bairros se isolando completamente, seja intencionalmente, seja pelo simples fato do aumento dos custos, principalmente quando se trata de raça e classe social.

A biblioteca é o tipo de lugar onde as pessoas de diferentes raízes, paixões e interesses podem participar de uma cultura democrática viva, onde os setores público, privado e filantrópico podem se unir para alcançar algo mais elevado do que o mínimo aceitável de coexistência.

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Recentemente a Forbes publicou um artigo defendendo a ideia de que as bibliotecas não têm mais objetivo e não merecem mais o apoio público. O autor, um economista, sugeriu que fossem substituídas por lojas da Amazon, alegando que a maioria da população certamente preferiria uma opção de mercado livre. A reação do público – especialmente dos bibliotecários, mas também de políticos e cidadãos comuns – foi tão veementemente negativa que a revista apagou o artigo de seu site.

Devemos prestar atenção em atitudes como essa. Hoje, as cidades se reinventam continuamente – e, embora os cínicos aleguem que o governo não tem nada de bom que contribuir ao processo, é importante que instituições como a biblioteca obtenham o reconhecimento que merecem. Vale notar que o prefixo latino liber, que compõe a palavra inglesa para “biblioteca” (library), significa “livro” e “livre”. A biblioteca representa e defende algo que precisa de proteção: as instituições públicas que, mesmo na era da atomização, polarização e desigualdade, servem de base para a sociedade civil.

Se tivermos qualquer chance de reconstruir essa coletividade de forma melhorada, uma infraestrutura social como a biblioteca é exatamente daquilo que precisamos.

Eric Klinenberg
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professor de Sociologia e diretor do Instituto para Conhecimento Público da Universidade de Nova York, é autor de “Palaces for the People: How Social Infrastructure Can Help Fight Inequality, Polarization, and the Decline of Civic Life”, do qual este artigo foi adaptado.
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