• Carregando...
 | /
| Foto: /

As democracias são singulares, na medida em que suas estabilidades dependem da legitimidade, ou seja, dependem da crença da população de que o sistema de governo tenha “o direito moral de governar”, nas palavras de Seymour Martin Lipset.

Avaliações morais da autoridade política são sempre relativas. Os indivíduos podem não gostar de seu sistema de governo, mas é importante que o vejam como algo melhor que qualquer alternativa que possam imaginar. Lipset e outros cientistas sociais fazem uma distinção entre “legitimidade de desempenho” e “legitimidade intrínseca”. A primeira é superficial: os indivíduos apoiam um sistema político porque ele funciona no momento. Mas a legitimidade baseada puramente no desempenho pode desaparecer quando este não vai bem.

O risco maior para a democracia é o caminho obscuro e gradual para a autocracia

Uma democracia somente estará verdadeiramente consolidada quando os cidadãos acreditarem que o sistema constitucional é o mais apropriado ao país, independentemente do seu nível de desempenho em um determinado período. Um limite mínimo razoável de consolidação democrática é não menos de 70% de compromisso público com a democracia como a melhor forma de governo, e não mais que 15% de apoio público expresso a uma opção de regime autoritário. É um padrão alto, que somente algumas democracias ocidentais conseguiram atingir.

Lipset argumenta que, quando as democracias funcionam bem por um período longo, passam a formar um reservatório de legitimidade intrínseca com o qual podem contar em tempos difíceis. Mas o que acontece quando esses “tempos difíceis” – como o aumento continuo da desigualdade econômica, ou décadas de renda estagnada, ou uma sensação de ameaça não resolvida à identidade de grupo – perduram por muito tempo? Uma alternativa sistêmica tende a emergir: a reação militar autoritária ou um líder individual autoritário, que declara que “só eu posso resolver tudo isso”.

Uma análise recente de Roberto Foa e Yascha Mounk, publicada no Journal of Democracy, mostra que o apoio à democracia nos Estados Unidos e na Europa diminuiu nos últimos 20 anos em quase todas as faixas etárias. O porcentual de americanos que respondem que ter “um líder forte, que não tenha de se preocupar com parlamento ou eleições” aumentou neste período: de cerca de 20% para 34%.

Leia também:Nossas convicções: O valor da democracia

Leia também:Nossas convicções: O Estado de Direito

O perigo real que as democracias estabelecidas enfrentam não é a tomada de poder pelo exército ou a suspensão dos direitos constitucionais por um pretenso ditador civil. O risco é o caminho obscuro e gradual para a autocracia, em que um líder eleito e “forte” procura marginalizar ou minar as instituições e limites estabelecidos – o Congresso, os tribunais, a mídia e a oposição política. Deste modo, o tal líder não se preocuparia com limites constitucionais e poderia simplesmente pôr a mão na massa.

Mas as instituições, afinal, são regras e padrões de comportamento perpetuados por pessoas, e devem ser defendidos por pessoas. Se estas abandonarem o compromisso incondicional com a democracia como a melhor forma de governo, se colocarem o ganho programático ou partidário de curto prazo acima das regras mais fundamentais do jogo democrático, então a democracia estará em perigo. A polarização política facilita o deslize para o abismo autocrático, porque torna a política um jogo de soma zero em que tudo pode ser justificado pela busca da vitória. Esta dinâmica de polarização, que destrói o jogo democrático e aponta para o líder forte, tem sido o cenário comum ao fracasso da democracia.

Se há uma lição que atravessa a história, é a de que nada é garantido. A forma mais preguiçosa e fatal de arrogância intelectual é pressupor que o que foi até hoje continuará como é. A legitimidade não é senão um conjunto de crenças e valores individuais. Se não trabalharmos para renová-los a cada geração, mesmo democracias historicamente estabelecidas podem correr risco.

Larry Diamond, sociólogo político, especialista em democracia e docente da Universidade de Stanford, é um dos autores da 2ª Coletânea da Democracia, publicada pelo Instituto Atuação. Este artigo é parte de um ensaio da Inquiry, produzido pelo Berggruen Institute e Zócalo Public Square, sobre legitimidade de governos.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]