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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Winston Churchill, o grande primeiro-ministro britânico que ajudou a derrotar Hitler, era um frasista genial e autor de grandes discursos. Uma de suas frases mais famosas é aquela de 1947 segundo a qual “a democracia é a pior forma de governo, exceto por todas as outras” – justiça seja feita, na ocasião Churchill estava citando um predecessor desconhecido e não parece que esta fosse a ideia exata do premiê britânico sobre o assunto. Mas a frase ganhou vida própria e demonstra uma visão paradoxal, entre resignada e pessimista, sobre a democracia, da qual não compartilhamos. Mas, antes de explicar por que temos um olhar muito mais positivo a seu respeito, é preciso compreender o que é uma democracia.

Sigamos com Churchill, desta vez em 1944: “Como a palavra ‘democracia’ deve ser interpretada? A ideia que tenho dela é a do homem comum, que tem uma esposa e uma família, que sai para lutar por seu país quando ele está com problemas, vai às urnas quando chega a hora, marca um ‘x’ numa cédula mostrando o candidato que ele quer ver eleito para o Parlamento – minha ideia é a de que ele é a base da democracia”. De fato é assim, mas esta ainda é uma definição incompleta – afinal, mesmo ditaduras realizam eleições periódicas. Para isso, Churchill também tem a resposta na sequência deste mesmíssimo discurso: “E é essencial para essa base que esse homem ou mulher o faça [referindo-se ao voto] sem medo, sem nenhuma forma de intimidação ou vitimização. Ele marca sua escolha na cédula em total segredo”.

O fato de as eleições ocorrerem de forma livre e sem coação não basta para uma democracia

Ainda assim, o fato de as eleições ocorrerem de forma livre e sem coação não basta para uma democracia. Ela ainda pressupõe um sem-número de outros “traços”: a não perpetuação dos governantes; uma efetiva separação de poderes; a admissão da propriedade privada e da livre iniciativa empresarial; a liberdade de constituição de empresas informativas, sem necessidade de prévia licença, autorização ou concessão governamental; o respeito pelas instituições em geral e, em especial, pelas decisões do Poder Judiciário...

Como se vê, não é fácil caracterizá-la. Talvez um sucedâneo para esse esforço seja perguntar-se: o que está na sua raiz? Compreendendo melhor a fonte de suas virtualidades, talvez possamos intuir melhor o que ela mesma, a democracia, é.

A nosso ver, o respeito pela dignidade humana, resultado de um desenvolvimento de séculos, é a raiz da democracia.

A democracia é a única forma de governo que respeita plenamente a dignidade humana e permite aos seus cidadãos desenvolver ao máximo as suas potencialidades. O homem é um ser tal que as principais decisões a respeito de si mesmo e de seu futuro jamais lhe podem ser impostas coativamente. De alguma forma, a dignidade implica em que a pessoa seja autora de seu próprio destino. Daí, por exemplo, a necessidade do sufrágio universal periódico. Daí também uma série de atitudes características de uma autêntica vivência democrática. Numa democracia, por exemplo, o indivíduo precisa exercer a virtude cívica de abrir mão de impor as próprias convicções, ainda que ele esteja convencido de que a sua opinião é a mais correta ou a mais nobre. Ninguém pode arvorar-se dono da sociedade civil, com o direito de impor o seu projeto pessoal de sociedade. Ninguém tem mais de um voto e esse voto vale tanto quanto o de todos e cada um de seus concidadãos. Essa participação “humilde” é essencial, e só quando amplamente compartilhada e vivida pode-se falar propriamente de uma cultura democrática.

Ninguém pode arvorar-se dono da sociedade civil, com o direito de impor o seu projeto pessoal de sociedade

A renúncia à imposição da própria opinião não significa, no entanto, que a democracia só viceja em um ambiente onde as convicções sejam fracas – pelo contrário: ela mesma se baseia no que talvez seja a mais forte das convicções, aquela a respeito do inestimável valor de cada vida humana. O reconhecimento da dignidade humana significa, ainda, que a noção de democracia não se reduz ao princípio majoritário: há certos direitos inalienáveis sobre os quais o projeto da maioria não pode avançar. Sem proteção das minorias não há democracia, mas uma ditadura da maioria em moldes utilitaristas.

Mais que um sistema elaborado racionalmente para o governo de uma sociedade, com suas regras claramente delineáveis, ela é uma “forma de ser”, um “estilo”, de uma sociedade e de um Estado, com consequências e reflexos em um sem-número de aspectos da vida de uma nação. Não que o conjunto de regras constitucionais referentes ao governo e a própria praxe desse governo não sejam fundamentais. Também o são, mas na prática um regime democrático está lastreado também em muitos outros pilares, como o nível cultural dos cidadãos, suas convicções fundamentais acerca da vida, do papel do Estado, da livre iniciativa etc.

Com tudo isso em mente, podemos entender o grande valor da democracia como garantidora da possibilidade de desenvolvimento de seus cidadãos. Outros regimes, baseados no controle e no dirigismo estatal, no intervencionismo e no estrangulamento da concorrência, deixam as pessoas aleijadas, tiram-lhes a iniciativa que faz uma sociedade seguir adiante. Na democracia, os cidadãos podem ser autores de seu próprio destino, empreender e perseguir os seus ideais sem coação, definir como querem ser governados. Na democracia, cada um pode contribuir à sua maneira para a construção do bem comum, de acordo com o que julga ser sua vocação: pelo cuidado da família, pelo estudo, pela atividade profissional, empresarial ou científica, pela arte, pela participação direta nos assuntos de Estado. E, para voltar a Churchill, “se isso é democracia, eu a saúdo. Eu a apoio. Eu trabalharia por ela”.

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