• Carregando...
Imagem ilustrativa.
Imagem ilustrativa.| Foto: Pixabay

Dias atrás, muitos brasileiros se solidarizaram com Mariana Ferrer pelos ataques sofridos durante a audiência judicial em que foi ouvida na qualidade de vítima de um estupro. As cenas causam repúdio, mas não chegam a surpreender. Quem enfrenta rotineiramente as lides criminais sabe que esse é o resultado das políticas ditas “progressistas” que colocaram o bandido no papel de vítima e transformaram o processo penal brasileiro em um estatuto da impunidade.

Antes de tudo, esclareço que não tive acesso a esse processo e, por isso, não sei dizer se houve ou não o crime imputado na denúncia. Mas basta assistir na íntegra à famigerada audiência para intuir que algo muito errado aconteceu naquele momento. Ainda que Mari Ferrer, hipoteticamente, tivesse mentido, ou acusado falsamente alguém, ou inventado toda essa história de estupro sabe-se lá por que, isso deveria ser objeto de uma apuração separada, na qual ela seria eventualmente investigada, processada e aí sim interrogada. Mas ali, naquele momento, ela estava depondo na qualidade de vítima de um crime hediondo e merecia ser ouvida com urbanidade.

Como bem disse Mari Ferrer, nem os bandidos acusados de crimes bárbaros são tratados daquela forma. E é verdade. Quem labuta na seara criminal sabe que, se o promotor de Justiça confronta o acusado de modo um pouco mais ríspido no seu interrogatório, o defensor pula da cadeira, bate na mesa e faz um escândalo para exigir que o juiz tome medidas para salvaguardar a dignidade do acusado contra as investidas do promotor.

As cenas protagonizadas pelo defensor do acusado durante a oitiva de Mari Ferrer mereceram a justa reprovação social, em especial das mulheres engajadas em movimentos contra a chamada “cultura do estupro”. Porém, essas ativistas também poderiam aproveitar a ocasião para fazer um mea culpa, pois setores radicais de movimentos feministas até hoje emprestam apoio e estão irmanados com grupos “progressistas” que, a pretexto de promoverem direitos humanos, elevaram o criminoso a um pedestal de santidade e o transformaram de algoz em vítima da sociedade. Há tempos o direito penal brasileiro deixou de ser um instrumento de proteção da sociedade contra os criminosos. Hoje, o direito penal serve para blindar os bandidos e tornar praticamente impossível puni-los por seus crimes. Trata-se de uma máquina de impunidade sem paralelo no mundo civilizado.

Para começar, a Justiça criminal brasileira é a única que acha normal o criminoso mentir deliberadamente em seu interrogatório, inclusive por orientação de advogados, para tentar engambelar os órgãos de persecução penal. Em qualquer lugar onde se leva a sério o sistema jurisdicional, o réu tem o direito de ficar em silêncio, mas não o direito de sabotar o processo que foi concebido para alcançar a verdade, muito menos em conluio com o seu defensor. Igualmente, só no Brasil é admitido com naturalidade que os acusados paguem os honorários dos seus advogados com o produto dos crimes que cometeram. Outra aberração por aqui é que, enquanto juízes e promotores são controlados por órgãos externos (CNJ e CNMP), os advogados são fiscalizados apenas pela sua própria corporação (OAB). O sistema brasileiro é tão surreal que os ministros do STF agora dedicam-se a investigar criminalmente pessoas que supostamente os ameaçaram, exercendo, ao mesmo tempo, as funções de inquisidor e julgador, algo impensável em um sistema que pretende seguir o modelo acusatório, no qual a investigação compete à polícia e ao Ministério Público e não ao Poder Judiciário. A inversão de valores é tamanha que recentemente essa mesma corte proibiu a polícia de ingressar em determinados territórios, especialmente aqueles dominados por narcotraficantes, como as favelas cariocas.

Qual é chance de um sistema desses servir aos interesses da sociedade e das vítimas indefesas? Nenhuma, claro. O sistema foi feito sob medida para não funcionar e, para ficar ruim, vai ter de melhorar muito. Óbvio que não se chegou a esse ponto por acaso. Esse “progresso”, como dito antes, é resultado de décadas de doutrinação em prol da glorificação do delinquente e da demonização primeiro da polícia, depois do Ministério Público e da magistratura e, agora, até da própria vítima.

O dano causado a Mari Ferrer é irreversível. Mas talvez o seu sofrimento não tenha sido em vão. Pode servir de lição para que a sociedade acorde e exija mudanças, em especial para restaurar a normalidade e reverter esse processo de desmonte do sistema penal. Assim, quem sabe, nunca mais uma vítima será colocada no banco dos réus.

Leandro G. M. Govinda, especialista em Direito Tributário, mestrando em Direito na Universidade George Washington (Washington D.C.) e ex-professor da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e da Escola do Ministério Público, é promotor de Justiça em Santa Catarina.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]