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A perfeita engenharia do nascimento
| Foto: Pixabay

Ao longo da história, o processo para o nascimento de um bebê passa por diversas fases. O que antes acontecia em ambiente doméstico, passa a ocorrer em ambientes hospitalares. Quando nas residências, o parto era assistido por mulheres que também haviam passado pela experiência do parto, eram mulheres cuidando de mulheres. Com a institucionalização do nascimento, os homens passam a ser a maioria a assisti-lo.

É fato que no nascimento em casa, boa parte em regiões rurais, corroborava a dificuldade diante da necessidade de uma assistência rápida e assertiva a tempo de salvar mãe e filho, situação esporádica que pode acontecer. Assim, o nascimento passa a ocorrer nos hospitais. Em contrapartida, nos hospitais encontram-se doentes, e, nesse contexto, o nascimento foi naturalmente associado à doença, assistido por profissionais preparados para tratar e curar processos patológicos.

Desconsideramos o corpo feminino como uma engenharia de tecnologia milenar associada ao seu tempo biológico e aplicamos a ele manobras e agentes químicos para findar o processo

Atualmente, antes do nascimento, dentro de suas condições econômicas, a família prepara uma estrutura, mesmo que mínima, para a chegada do novo membro. Os móveis do quarto, roupinhas, acessórios são comprados. A mãe também se prepara fisicamente, busca fazer exercícios, manter uma boa alimentação e, para o grande dia, escolhe roupas confortáveis e procura estar com boa aparência. Tudo ocorre enquanto aguardam a chegada da data provável para o nascimento – que foi identificada geralmente no primeiro exame de ultrassonografia. Próximo dessa data, a bolsa pode romper e se as contrações iniciarem, então, imediatamente, busca-se estar na presença de profissionais que irão assegurar um nascimento saudável. No entanto, mais de 50% das mulheres acabam tendo seus filhos por cesáreas agendadas, sem oportunizar esse tempo adequado de gestação. Essa condição facilita a vida da família e da equipe que assiste o nascimento, e aparentemente há um maior controle da situação. Mas será que para os principais interessados, a mãe e o filho, é bom que seja assim?

O fato é que nascemos uma única vez em nossa vida. Para esse acontecimento, uma tecnologia de primeiro mundo foi preparada naturalmente. Uma engenharia bem arquitetada para que o novo ser se adapte fora do organismo que o gerou. Essa adaptação é relacionada primeiramente ao respirar sem o auxílio do útero e da placenta, utilizando os próprios pulmões, e, depois, a manter a temperatura corporal suportável para que o pequeno corpo esteja apto a sobreviver com suas plenas funções fisiológicas. Já o corpo materno, ao parir naturalmente, dá início a uma engrenagem de contração do útero que impede sua morte por hemorragia. Essas situações acontecem tão naturalmente que, como profissionais, não precisamos, na maioria das vezes, oferecer estímulo algum, pois o organismo feminino foi biologicamente constituído e preparado para gerar e reproduzir, sem sofrimento (sim, sem sofrimento. Porque contração não é sinônimo de dor. Contração é um mecanismo imprescindível para que o bebê e sua mãe entrem em um processo sincronizado de movimentos para o nascimento).

O que temos na atualidade: uma intensa preocupação com o entorno do nascimento à procura de algum motivo que justifique a pressa para o desfecho da gestação e do parto, e uma necessidade de dominarmos esse fenômeno para obter a falsa certeza que está tudo sob controle. Nessa ingenuidade, a fim de acalmar nossa ansiedade, a família e nós, profissionais, ignoramos as engrenagens fisiológicas e interferimos no processo natural do nascer. Desconsideramos o corpo feminino como uma engenharia de tecnologia milenar associada ao seu tempo biológico e aplicamos a ele manobras e agentes químicos para findar o processo. Na ânsia de controlar esse evento em seu cenário original, interferimos no mais belo mecanismo, afinal ele é único. Peço licença e tomo a liberdade de fazer uma analogia do corpo materno a uma máquina: é como se soltássemos vários de seus parafusos e correias, diminuíssemos ou aumentássemos o óleo e assim a “mãe natureza” responde. Mas essa tecnologia da melhor qualidade, o corpo materno, não responde adequadamente dessa maneira tanto quanto responde quando se respeita seu tempo natural.

É nesse cenário, corrompido por nossa intenção em ajudar ao mesmo tempo em que ignoramos o tempo biológico, que o processo do nascimento entra em pane e pode até ser interrompido, pois aquele corpo que está para chegar passa a estar com risco iminente de sofrer traumas irreversíveis, incluindo a sua morte. A cesárea é utilizada dessa forma todos os dias. Mesmo prevendo essa situação, a cesárea se repete de forma banalizada e, assim, boa parte das crianças chega ao mundo imersas nesse contexto. Enquanto isso, o parto natural torna-se o vilão, o agente que causará o sofrimento materno e a possível sequela no bebê. O parto natural é preconcebido como algo que não terá um bom desfecho e, para que isso não se torne verdade, precisamos “ajudar”.

Estamos invertendo o processo! É urgente cuidar do parto fisiológico, ou seja, cuidar da mulher gestante e prepará-la para esse momento. Temos de investir no suporte, em recursos humanos voltados a medidas não farmacológicas de auxílio à dor. Devemos oferecer à mulher a oportunidade de vivenciar seu parto de forma prazerosa, pois, quando não se pode expressar emoções e sensações emanadas de sua sexualidade, torna-se sofrimento. A promoção de espaços para a educação em saúde e grupos de gestantes para compartilhar seus medos, dúvidas e frustrações é essencial. Como profissionais de saúde, nossa aproximação da mulher e da família de forma educativa é terapêutica, assim como nossa habilidade em acreditar no corpo feminino e oferecer tempo e cuidado a ele é uma emergência.

Alessandra Reis é professora e enfermeira obstetra, coordenadora da Comissão de Saúde da Mulher do Coren/PR.

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