• Carregando...
A polêmica regra das 10 mil horas
| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

O jornalista e escritor canadense Malcolm Gladwell escreveu o bem-sucedido livro Outliers (“Fora de série”) em 2008. Sua hipótese preponderante era condensada em uma expressão: a regra das 10 mil horas. Em suma, não é o talento natural que importa, mas é a prática que faz a perfeição.

Se é a experiência que nos leva às realizações extraordinárias, qualquer um pode receber um prêmio Nobel, conquistar um pódio nos Jogos Olímpicos, tornar-se um cientista de renome, fazer-se um médico internacionalmente famoso. Basta ter empenho e demonstrar grande dedicação.

As 10 mil horas de Gladwell rapidamente tornaram-se um mantra no mundo dos negócios. No entanto, para K. Anders Ericsson, um psicólogo sueco da Universidade Estadual da Flórida, a regra de Gladwell está longe de ser correta, posto que não é relevante a quantidade de horas que alguém se dedica a um trabalho, mas como essas horas são utilizadas.

Um exemplo para isso é conduzir um veículo. Depois de uma longa experiência dirigindo, uma pessoa vai progressivamente melhorando, mesmo sem notar que está se aprimorando, até que as ações passam a ficar subconscientes e automáticas. Como resultado, essa pessoa pode dirigir por 10 mil horas ou mais, e mesmo assim nunca vai ser uma campeã de Fórmula 1. Segundo Ericsson, “à medida que a tarefa fica automatizada, perde-se o sentido de controle, e sem controle não há progresso”.

Ericsson também observou o desempenho de violinistas experientes. Todos praticavam o mesmo número de horas por dia, mas alguns colocavam como meta aprender tarefas mais difíceis. É o que ele chama de “prática com propósito”, isto é, quando há o objetivo de melhorar.

O jornalista e escritor David Epstein lançou o livro A Genética do Esporte em 2013. Ele afirma que experiência é necessária, obviamente. Não daria para ser um grande nadador sem jamais ter pulado na água. Entretanto, é a estrutura genética que determina quanto tempo será necessário para alcançar a excelência. Gladwell respondeu, na revista New Yorker, que Epstein escrevera um “excelente livro”, mas que não tinha lido com atenção o que ele dissera. “Ninguém é bem-sucedido em atividades de alto nível sem talento inato. O que eu afirmei em meu livro foi: conquista é talento, mais preparo e vontade.”

A tese das 10 mil horas pode ser meio problemática, no entanto simboliza uma visão de mundo mais equânime e mais incrédula em relação às pessoas predestinadas e às estrelas que nasceram com um determinado dom. Malcolm Gladwell se tornou um paradigma no campo do esforço, da possibilidade ilimitada do ser humano, da noção de que atitude e perseverança contam mais do que conhecimento, treino e vontade.

Ericsson, por sua vez, também entendeu que Gladwell interpretou mal a sua tese. No livro Peak: Secrets from the New Science of Expertise, escrito em colaboração com Robert Pool, Ericsson afirma que não se trata de descobrir quantas horas são necessárias, e sim que tipo de horas. Para chegar à excelência é preciso treinar de uma maneira específica. Em seu livro, Gladwell e Pool reuniram outro exemplo: os anos de apresentação dos Beatles em shows na Alemanha totalizariam 10 mil horas. Em uma biografia dos Beatles, o autor Mark Lewisohn estima que as horas de prática deles na Alemanha esteja mais perto das mil do que das 10 mil. Entretanto, a questão principal é que compor, muito mais do que tocar em público, é a atividade que tornou os Beatles uma lenda. Seria preciso entender como John Lennon e Paul McCartney fizeram isso.

Ericsson diz que é possível dar a alguém absolutamente comum uma habilidade que ninguém imaginaria que fosse possível. Ele desmistifica o “dom inato” de gênios como Mozart, Bach e Beethoven. Há boas evidências de que eles são fruto de treino. Mas não de qualquer treino!

Ericsson acha que é preciso sair da zona de conforto para obrigar todos os elementos do seu sistema a se readaptarem, criando uma nova estabilidade. O risco é forçar demais e criar uma situação de esgotamento que impede a pessoa de chegar a um novo equilíbrio. Ericsson vai além, indicando o uso de um professor, com a capacidade de ensinar os métodos mais eficazes de progredir. Isso só vale onde existem critérios objetivos para distinguir os “melhores” dos “bons” e onde há práticas estabelecidas para atingir o desempenho superior.

Os seguintes passos são relevantes: possuir uma grande vontade de progredir; sair da zona de conforto, o que exige tentar coisas novas com o máximo de atenção e esforço, sem se estressar; ter um plano de pequenos avanços que, somados, vão desembocar na mudança maior desejada; manter o foco; esforçar-se para adquirir as habilidades fundamentais de forma correta, em geral com a ajuda de um bom professor.

Quando se fala em excelência, é evidente que talento, treino e vontade precisam coexistir. Mas será que o talento não se manifesta na disposição de treinar mais? Poderia um cientista inovador existir sem que ele estude tudo aquilo que já desenvolveram na sua área de interesse?

Para se tornar um empreendedor inovador bem-sucedido ou jogar futebol melhor que o Pelé talvez seja necessário um certo talento inato, muita vontade de progredir e um imenso esforço!

Marcos de Lacerda Pessoa, engenheiro, Ph.D. pela Universidade de Birmingham (Inglaterra) e pós-doutor em Engenharia pelo MIT, é autor de Sementeira de Inovação, organizador e editor de Pinceladas de Inovação e proprietário do centro de apoio à inovação futuri9.com.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]