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| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

Desde o mês de setembro, quanta mudança já não se verificou na rotina do brasileiro! Quando se toma um táxi ou se vai ao barbeiro, em vez da habitual conversa sobre o calor ou o frio, a vitória ou a derrota do time de futebol, deixou de haver assunto mais urgente que o das eleições. Feitos os cumprimentos de praxe, seguidos de um breve silêncio também protocolar, caminha-se incontinenti, como gostam de dizer os juristas, rumo ao tema eleitoral.

O mesmo tem se dado no seio das famílias, nos grupos de amigos, nas conversas com os colegas de trabalho. Seja nas refeições, no happy hour, nas pausas para o café ou, sobretudo, nos grupos de WhatsApp e nas redes sociais, não raro em tom inquisitorial, quer-se logo que o interlocutor revele em quem irá depositar o voto.

A depender da resposta, os diálogos travados nessas ocasiões tornam-se beligerantes e ásperos: filhos censurando agressivamente a escolha dos próprios pais, amigos encolerizados pela opção dos seus iguais, colegas com o dedo em riste no ambiente de trabalho.

Dificilmente entre os membros de uma família minimamente sólida se produzirá alguma ruptura mais grave. Entre os colegas que ainda não gozam do título de amigos, a discussão tornará mais improvável o surgimento de uma amizade que mereça tal nome. Mas e entre os amigos? Será possível que a hostilidade no trato e a intolerância para com a opinião do outro venham a desfazer a amizade?

Juízos precários e transitórios tão pouco valem diante de um amor de amizade, que dá sabor e sentido à existência

O escritor irlandês C.S. Lewis, no seu Os quatro amores, dá os contornos do amor mais desinteressado de todos, que é o da amizade. Nela, ao contrário do eros ou amor romântico, não há inquisição: “você se torna amigo de alguém sem saber ou se importar se ele é casado ou solteiro ou como ganha a vida”.

Certamente algum interesse em comum os uniu para o início da amizade, que geralmente começa com o espanto dos novos amigos: “O quê? Você também? Pensei que eu fosse o único”. A amizade, contudo, é desnecessária, assim como a filosofia, a arte e o universo. E completa Lewis: “ela não tem valor de sobrevivência; ela é, antes, uma das coisas que dão valor à sobrevivência”.

De fato, sem a amizade, perde-se uma fonte autêntica de alegria. Estar com os amigos é como se reunir como príncipes de países independentes, no estrangeiro, em território neutro, cada qual livre do pobre contexto profissional ou social que o limita.

Embora se tenha dito que a amizade costuma principiar pela identificação de um interesse que se compartilha, não perde a sua natureza se eventualmente os amantes – os amigos amam com amor de amizade – passam a sustentar pontos de vista diferentes em tema que consideram relevante.

Leia também: As eleições e a importância do diálogo (editorial de 7 de outubro de 2018)

Nossas convicções: O poder da razão e do diálogo

No contexto belicoso em que vivemos, pode um amigo chamar o outro de “fascista” e este retrucar com a pecha de “comunista”? Pode, mas não deveria. Pode apenas se a intimidade singular de uma amizade permitir que se dirijam um ao outro como se estranhos fossem, procedendo assim porque sabem que a amizade já é revestida de uma solidez inabalável. Não deveria porque, além de os termos serem muitas vezes imprecisos e reducionistas, a consciência dessa solidez nem sempre é confiável.

Há testemunhos de toda parte de amizades que se imaginavam sólidas e que vieram a se enfraquecer ou desmoronar simplesmente pelo antagonismo das posições políticas. Raciocina-se nesses termos: como é possível que o José, meu amigo e da minha convivência, vote e defenda aquele fascista ou aquele comunista?

As experiências da Guerra Civil Espanhola, ocorrida na segunda metade da década de 30, em um contexto de polarização e divisão muito maior, podem nos dar exemplos de como proceder com o amigo ou desconhecido que não se alinha ao nosso pensamento politico.

Não há verdadeira semelhança entre aqueles fatos e os da realidade brasileira, mas persistem os rótulos de fascista e comunista. No livro O homem que sabia perdoar, Francisco Faus relata o comportamento heroico de um sacerdote perseguido, como tantos outros, pela fé que professava. Os seus exemplos de tolerância e de amor ao próximo são desconcertantes.

Sem a amizade, perde-se uma fonte autêntica de alegria

Quando caminhava pelas ruas, o jovem padre Josemaria Escrivá chegou a escutar do pedreiro que trabalhava em uma obra: “Uma barata. É preciso esmagá-la”. Em outra ocasião, atiraram à sua cabeça um punhado de barro, que quase lhe tapou uma orelha. Fazia questão, nessas situações cada vez mais recorrentes, de calar-se, “apedrejando” os que o insultavam com orações. Em um episódio bastante peculiar, dirigindo-se à escola em que lecionava, notou um grupo de operários da construção civil encarando-o, com ar de gozação. Subitamente, um deles, que estava com o macacão todo manchado de cal, esfregou-o na batina negra do sacerdote. Fitando-o nos olhos, Josemaria, com ar jocoso e antes que o operário pudesse esboçar uma reação, deu-lhe um abraço forte e disse: “Vamos lá, meu filho, vamos completar o serviço” e, mostrando a ele sua batina toda suja, indagou: “Que tal, ficou boa assim?”

Quanto aos seus amigos, tinha uma norma de conduta: não perguntava a nenhum deles o que pensavam em matéria de política. Nós, homens e mulheres comuns, não precisamos fazer o mesmo, já que não temos um trabalho sacerdotal que se dirige a todos, indistintamente. Mas seria conveniente que nos valêssemos do mesmo raciocínio que o motivava: “eu não ponho etiquetas em ninguém”.

Se assim o fizermos, se unirmos alegremente a nossa batina com o macacão empoeirado de cal dos operários que cruzarem nossos caminhos, seremos testemunhas de amizades autênticas, que não devem jamais estar à mercê de inclinações políticas, de juízos precários e transitórios. Tão pouco valem diante de um amor de amizade, que dá sabor e sentido à nossa pobre existência.

Caio Morau é advogado, mestre e doutorando em Direito Civil e professor da Escola Superior de Direito.
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