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Imagem ilustrativa.| Foto: Hedeson Alves/Gazeta do Povo

Desde que a pandemia Covid-19 surgiu em 2020, as liberdades entendidas como um direito sofreram retrações, perderam o status de mobilidade transformadora da vida humana e social e foram vítimas de alterações semânticas em sua compreensão constitucional para justificar o injustificável. Em resumo, a liberdade deixou de ser respeitada como um direito inalienável da condição cidadã.

Com essas modificações ocorrendo, seu valor na vida social foi reavaliado e sua função na vida pessoal dos indivíduos perdeu relevância jurídica. Diante dessa situação confusa e permeada de incerteza quanto à validade da liberdade e democracia nos dias atuais,é preciso se perguntar sobre o estado dessa nova configuração político-social de democracia que vigora no Brasil.

O que é democracia? Uma pergunta simples que pode ter muitas respostas incompletas, ou definições inconclusas e imprecisas. Normalmente se diz que a democracia é o “governo do povo e para o povo”. Mas será que se trata de um sistema de governo em que o povo de fato realiza sua vontade? Ou será apenas uma ilusão criada para o povo? Mesmo que o conceito ainda pareça vago, a democracia é a melhor de todas as formas de governo que existe. Sua fragilidade, porém, consiste na relação entre vontade popular e a questão da representatividade.

É relativamente perceptível o aumento do grau de participação efetiva da população na vida política da nação, sobretudo nos eventos das mega manifestações.

Mesmo sendo favorável à democracia, Rousseau entende que o calcanhar de Aquiles desse sistema recai sobre os riscos da representação da vontade do indivíduo que é, por natureza, inalienável. A crítica de Rousseau fragiliza o caráter funcional da engrenagem política da democracia como um sistema representativo da vontade geral. Aliás, sabe-se que, na prática, representar a vontade popular costuma não ser a maior das prioridades que os representantes políticos dão ao seu exercício como parlamentares eleitos pelo voto democrático.

Na maioria das vezes, as decisões políticas dos representantes do povo expressam muito pouco o interesse do povo. Essa fragilidade funcional foi bem criticada pelo filósofo do Contrato Social. Infelizmente, o modelo da representatividade só funciona para aumentar o contingente de oportunistas empregados no Congresso Nacional.

Representar a vontade de outrem é, de fato, uma tarefa que poucos conseguem realizar na vida pública. Os representados podem até se iludir e se imaginarem como parte de uma engrenagem sinergética no campo da vida política. Mas Carlos Drummond de Andrade já era completamente cético quanto a proposta desse modelo e chegou a se referir à democracia como a forma de governo em que o povo pode se “imaginar estando no poder”.

A compreensão do poeta brasileiro coloca em questão o grau de sanidade mental daqueles que acreditam participar efetivamente das decisões políticas de uma sociedade, e levanta o problema relativo à legitimidade do poder exercido pelos parlamentares em nome do povo. No entanto, na história mais recente da política brasileira, uma faceta surpreendente do povo aparece: a sociedade, em sua vasta maioria, foi às ruas exigindo mudanças e apontando para novas direções aos políticos eleitos para representar a sua vontade geral.

É relativamente perceptível o aumento do grau de participação efetiva da população na vida política da nação, sobretudo nos eventos das mega manifestações através das quais pautas políticas são reivindicadas e comunicadas por meio de cartazes e faixas.

O processo histórico recente parece revelar outra tendência de aporte à agenda do governo para caminhar em direção à realização de grandes reformas necessárias para o enxugamento da máquina pública. Afinal, o povo brasileiro tem despertado e reivindicado maior participação nas grandes decisões políticas do governo. Um exemplo disso foi a participação da população em peso nas ruas para que fosse aprovada a pauta sangrenta da Reforma da Previdência 2019.

Felizmente, esse exemplo contraria a compreensão pessimista do poeta Drummond e mostra que a sociedade brasileira começa a entender que pode e deve dar a direção para os seus representantes políticos eleitos pelo voto secreto numa democracia madura, voto esse que lhe permite ter maior participação na agenda política tanto do Legislativo quanto do Executivo.

A população que foi às ruas compreende que a democracia não existe apenas como uma “ilusão da população”, que finge participar da agenda do poder no Brasil. As manifestações que aconteceram estão contribuindo para a formação de uma crença coletiva de que o povo unido nas ruas pode, sim, mudar o destino de uma nação. A força da democracia ganhou expressão efetiva com os protestos do povo nas ruas. Obviamente, essa mobilidade não deve ser entendida como demonstração precisa de uma “democracia participativa”, pois se trata de uma participação política indireta. No entanto, o Congresso Nacional nunca sofreu tanta pressão de modo tão efetivo quanto agora.

O Brasil vive uma desordem moral e institucional generalizada. Infelizmente isso afeta diretamente o funcionamento da democracia. Na verdade, o Brasil se tornou no período da pandemia Covid-19, exemplo de como ela não pode funcionar. Direitos fundamentais foram desprezados e seus portadores legítimos se tornaram vítimas de perseguição ilegal. Sobejos exemplos foram expostos e o país exibiu ao mundo o retrato de uma democracia disfuncional.

A política brasileira nunca teve uma crise de representatividade tão flagrante como nesse período. A democracia se tornou um regime com características semi-anárquicas. O ideal democrático de vida social foi (e tem sido) colocado em xeque permanentemente nos últimos dois anos.

Coisas estranhas andam acontecendo em uma sequência de fatos intrigantes. A progressão da pandemia vulnerabilizou os valores emblemáticos de uma sociedade aberta e livre. Não se sabe mais ao certo o que significa viver numa democracia plena. O próprio conceito de democracia está sob suspeita por conta das ilicitudes cometidas pelos agentes políticos e instituições que, em nome dela, dizem (em tese) defender os ideais de uma democracia sadia.

O Brasil é um país democrático? Muitos diriam a princípio que ‘sim’. Na prática, porém, o que se verifica é outra coisa. Uma parte da democracia sobrevive a duras penas nesse país. A pandemia (Covid 19) parece ter afetado o psiquismo de parte significativa dos atores políticos, dos servidores públicos em geral e de parte importante de autoridades do Judiciário. Muitos desses agentes sociais agiram em descompasso às expectativas da consciência coletiva e do espírito democrático.

Em ano de eleições gerais, os lobos nunca se apresentaram com tanta fome de devorar as pobres ovelhas perdidas da sociedade brasileira como nos dias atuais.

O povo e seus representantes nunca estiveram tão distantes uns dos outros. A cidadania perdeu suas prerrogativas legais. Necessidades urgentes de cidadãos livres foram tratadas como coisa de menor importância política no momento de maior angústia dos brasileiros na época da pandemia.  A liberdade perdeu suas garantias jurídico-constitucionais de mobilidade. A política do “fica em casa” se tornou slogan de opressão sobre a parte mais vulnerável da sociedade que foi impedida de desenvolver atividades econômicas que desse o suporte necessário para sua sobrevivência. E alguns ainda estão tentando criar dispositivos que sejam capazes de reprogramar a democracia para funcionar como um regime social que estabelece limites à liberdade dos brasileiros em geral. Se isso acontecer, a democracia representativa perderá sua sustentabilidade operacional.

Em ano de eleições gerais, os lobos nunca se apresentaram com tanta fome de devorar as pobres ovelhas perdidas da sociedade brasileira como nos dias atuais. A democracia brasileira vem funcionando atualmente de forma um tanto anárquica. Regras que anteriormente eram válidas deixaram de ser, e direitos fundamentais dos brasileiros do bem foram vilipendiados. O dissenso entre os poderes se tornou componente vital do atual jogo político que vem sendo usado para tumultuar a compreensão moral do que significa viver em um Estado Democrático de Direito.

Uma interpretação pautada na hipótese do bom senso evocaria a seguinte pergunta: será que a racionalidade democrática sofreu uma espécie de efeito apagão durante a pandemia de Covid-19? Muitas concessões foram feitas a discursos inaceitáveis que atacaram e buscaram suprimir as liberdades individuais, legitimando, pois, comportamentos verbais que desrespeitaram as garantias associadas à cidadania do brasileiro em geral. Tanto o Judiciário como parte expressiva do Legislativo se acharam autorizados a alterar o sentido original de alguns textos da Constituição Federal brasileira. Com uma habilidade de sofistas modernos, os disfarçados inimigos da democracia resolveram oferecer outra versão de democracia sem a preservação das liberdades individuais. Decretos emergentes passaram a ter mais peso que os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal brasileira. Que realidade inaceitável! Parte do Legislativo usou de má fé e até tentou dar o golpe do parlamentarismo branco.

A persistência nesta prática por parte de muitos dos congressistas, governadores e prefeitos em todo Brasil parece que tinha um objetivo claro a atingir: levar os indivíduos cidadãos a perderem a memória dos direitos fundamentais que são parte constitutiva da vida moral na democracia.

Mas povo brasileiro, que se viu traído pelos seus representantes, foi às ruas e protestou semana após semana. Esse foi o xeque-mate que a população do bem deste país deu aos falsos amigos do Estado Democrático de Direito. Não há dúvida de que brasileiros de bem acordaram a tempo e rejeitaram essa tentativa insidiosa contra aquilo que é a alma da democracia: a liberdade humana em sua faceta multiforme.

Anderson Clayton Pires é doutor em Sociologia e em Teologia e Hermenêutica, pastor luterano e professor.

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