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Presidente do STF, Dias Toffoli, deu o voto de minerva no julgamento que proibiu a prisão em segunda instância por 6 a 5.
Presidente do STF, Dias Toffoli, deu o voto de minerva no julgamento que proibiu a prisão em segunda instância por 6 a 5.| Foto: Lula Marques/Fotos Públicas

Segundo os estudiosos da Psicologia, o ser humano tem uma propensão natural a buscar coerência entre suas características cognitivas (como conhecimento, opiniões ou crenças) e suas ações práticas. Quando a pessoa acredita que determinada ação é correta e, em sua prática, ela age de maneira incoerente com sua própria crença, surge aí um conflito mental chamado “dissonância cognitiva”. Consonância significa compatibilidade, conformidade, concordância entre duas ideias, atos ou coisas. Dissonância significa o inverso: incompatibilidade, não conformidade, não concordância. Na música, dissonância significa dois ou mais sons em desacordo; é desafinação.

Leon Festinger (1919-1989), professor da New School for Social Research de Nova York, foi pioneiro nos estudos sobre a dissonância cognitiva e ele cunhou essa expressão, em 1957, quando buscava entender os conflitos pelos quais passa um indivíduo no processo de tomada de decisão e de ação. Festinger concluiu que, se pelo menos dois elementos cognitivos forem incoerentes entre si, isto é, o indivíduo tem crença ou princípio incompatível com determinada ação ou atitude dele próprio, ele entra em conflito interno e desenvolve consequências para seu estado mental e seu equilíbrio emocional.

A necessidade de justificar atos incompatíveis com suas crenças e seus princípios leva normalmente a pessoa a minimizar o erro e a justificar por que o praticou

Mas, a dissonância não existe apenas quando há conflito entre crença e ação. As pessoas desejam um equilíbrio em seu sistema cognitivo, e buscam harmonia também entre seu conhecimento e suas opiniões. Nas pessoas estudiosas, é comum o aparecimento de conflito entre sua opinião anterior e o novo entendimento que vem do conhecimento obtido nos estudos. Logo, é comum o estudioso se esforçar para trazer a dissonância cognitiva à consonância.

Para obter equilíbrio do sistema cognitivo, o indivíduo deve resolver a contradição entre conhecimento e opiniões precedentes. No esforço para manter um estado interior de coerência consigo mesmo, a busca pela coerência (consonância) é a regra, e a incoerência (dissonância) tende a ser exceção, pois não é aceita pacificamente pela mente humana. Por isso é comum ver alguém tentando justificar atos próprios quando se sabe que aquela pessoa não faria tal coisa e que ela mesma, no fundo de seu íntimo, desaprova sua própria atitude.

A necessidade de justificar atos incompatíveis com suas crenças e seus princípios leva normalmente a pessoa a minimizar o erro e a justificar por que o praticou, como forma de manter a coerência, certamente por sentir-se numa situação psicologicamente incômoda. Há o exemplo clássico do fumante que, sabendo dos efeitos nocivos do fumo, afirma que o prazer de fumar faz o risco valer a pena, logo, continuar a fumar fica parecendo coerente com sua crença sobre o fumo.

O jurista alemão Bernd Schünemann (1944-) fez estudos ligando a teoria da dissonância cognitiva ao processo penal, principalmente quanto à atuação e formação da convicção do juiz até sua decisão. O juiz lida com duas teses e opiniões opostas e antagônicas, apresentadas por acusação e defesa. Schünemann afirma o seguinte: no curso do processo, o magistrado que estuda primeiro o inquérito e as peças da investigação policial pode, ao conhecer o caminho e os passos percorridos pela polícia e pelo promotor público (acusação), ter sua convicção e conclusão prejudicadas por contrariar a versão do acusado (defesa), que só é conhecida posteriormente.

O questionamento de Schünemann é se a leitura do inquérito policial, que é a investigação preliminar, não acaba criando uma imagem tendenciosa do fato na mente do juiz, capaz de obscurecer seu olhar para outras hipóteses. A propósito, há juristas que defendem a ideia de haver dois juízes no processo: um de instrução e outro de julgamento e sentença. Mas outros não concordam, pois afirmam que, na prática processual, a acusação e defesa atuam em caráter simultâneo, logo, não existiria prejuízo à convicção do juiz por ele conhecer o teor da investigação e da acusação antes dos argumentos da defesa.

O tema da dissonância cognitiva me ocorreu ao ouvir discursos inflamados de políticos, tanto em audiências judiciais quanto nos microfones do parlamento, todos declarando enfaticamente sua inocência e pureza moral, com um grau de convicção que parece derivar da crença deles em sua inocência total. Entre muitos eles, muitos têm patrimônio milionário incompatível com sua renda de toda a vida, quando não com contas na Suíça.

Este artigo já estava redigido quando o STF desautorizou a prisão de condenados em segunda instância, e o que se viu foram presos famosos, condenados por terem fortunas provadas em imóveis e planos de previdência milionários, saindo da prisão e gritando que, se juntarem juízes, promotores e delegados, estes não dão 10% da honestidade do condenado libertado. Eis um caso de dissonância cognitiva, ou de malandragem pura.

José Pio Martins, economista, é reitor da Universidade Positivo.

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