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O erro do Estadão sobre ensino domiciliar

Assim como não há no ordenamento jurídico brasileiro o crime de notícia falsa, também não há o crime de ensino domiciliar. (Foto: Annie Spratt/Unsplash )

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Na semana passada, o Estadão divulgou uma matéria sobre o caso Cichelero que merece ser incluída na tag “Estadão verifica”. Ao responder ao questionamento “Homeschooling é proibido no Brasil?”, o jornalista William Canan afirma que “por entender que não há menção ao homeschooling na Constituição, os ministros decidiram em plenário que a prática é inconstitucional”. Talvez William só tenha lido a última linha do Recurso Extraordinário 888.815 (voto do ministro Alexandre de Moraes que integra o arquivo da ementa), que trata do Tema 822: “Não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira” e interpretado que por não existir na legislação brasileira, a prática é inconstitucional.

Em contrassenso, a seguir, William menciona que a regulamentação foi defendida na gestão do presidente Jair Bolsonaro e que o projeto de lei 1338 proposto pela deputada Luísa Canziani está em debate na Câmara dos Deputados. Contudo, se a prática foi declarada inconstitucional pelo STF, como ela pode ser debatida numa casa legislativa? Outro ponto importante a ser destacado é que o PL 1338/22, na verdade, foi aprovado pela respectiva casa e aguarda algumas rodadas de audiências públicas (das quais integrei a primeira lista) ou votação direta no Senado Federal.

O Estado não pode punir uma mãe que pratica o ensino domiciliar tão somente em razão da inexistência da prática no ordenamento jurídico, embora ele tenha o total direito de punir um administrador público que atua sem observar as atribuições dispostas em lei

Todos nós falhamos, todos nós cometemos erros, então é possível que talvez um ou outro projeto contrário à Constituição Federal seja aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, seja da Câmara, seja do Senado, mas, como um projeto declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal teria sido aprovado em ambas as comissões? Estariam os deputados atuando de forma contrária às decisões da Alta Corte? Ou seriam os deputados (e assessores e técnicos legislativos) incompetentes no exercício da própria função?

Importa salientar que quando uma conduta, uma ação ou uma prática inexiste na legislação brasileira, de acordo com o princípio da legalidade estrita, todo aquele que não atua em nome da administração pública tem a permissão do Estado para atuar da forma que lhe convém, desde que a conduta, a ação ou a prática não seja proibida. O Estado não pode punir uma mãe que pratica o ensino domiciliar tão somente em razão da inexistência da prática no ordenamento jurídico, embora ele tenha o total direito de punir um administrador público que atua sem observar as atribuições dispostas em lei. Em outras palavras: aquele que atua em nome da lei (funcionário público) só tem permissão para praticar atos que a lei permita, regule, disponha, já aquele que não atua em nome da lei, pode praticar todos os atos que a lei não proibir.

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De volta ao último parágrafo do voto do ministro Alexandre de Moraes no RE 888.815, e não à última linha, o ministro afirma que o ensino domiciliar não é vedado por lei. Se a prática não é considerada crime, não há que se falar em punição das famílias educadoras. Peço aqui data máxima vênia para discordar do ministro quando ele conclui a afirmação acima “Nesse sentido, em que pese não ser vedado, ainda não foi criado e regulamentado por lei, e, consequentemente, não poder (sic) ser aplicado às crianças, jovens e adolescentes”. Se a prática não é proibida e tampouco regulamentada por lei, não há que se falar que ela não pode ser aplicada às crianças, aos jovens e aos adolescentes com base no princípio mencionado anteriormente.

A forma como alguns jornais retratam as fake news contribui para incutir na população a consciência de que veicular ou compartilhar uma notícia falsa é crime. Assim como não há no ordenamento jurídico brasileiro o crime de notícia falsa, também não há o crime de ensino domiciliar. Na mesma linha, podemos afirmar que evasão escolar é mera irregularidade administrativa por constar apenas no Estatuto da Criança e do Adolescente e não no nosso código de crimes, o Código Penal. Ainda que o ECA, nesta infração administrativa, disponha que a criança que não frequenta a escola não é nutrida intelectualmente, o Código Penal revela, no crime de abandono intelectual, que não importa se a instituição de ensino tenha CNPJ ou CPF, ou se leva o nome de escola ou lar, o que os conselheiros tutelares e promotores devem se atentar é se o menor de idade não é nutrido intelectualmente.

Por fim, podemos depreender que todo promotor de Justiça que apresenta uma denúncia de abandono intelectual contra uma família educadora, além de ignorar os princípios processuais de legalidade estrita, economia processual, celeridade, razoabilidade e proporcionalidade, também ignora a prática sobre a qual atua, o ensino domiciliar. Outrossim, ignora o fato de que a atuação, no exercício da função ou a pretexto de exercê-la, com base no mero capricho ou na satisfação pessoal configura, esse sim, crime de abuso de autoridade.

Isadora Palanca é escritora, ghostwriter e revisora, com formação em Direito, mediação e especialização em Direito e Processo Civil. É autora dos livros “Ensino domiciliar na política e no direito”, “Regulamentações do ensino domiciliar no mundo” e “AFESC: em defesa do ensino domiciliar”, e procura famílias que pratiquem homeschooling para o próximo livro.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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