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Legado

Francisco: o papa dos contrastes e da misericórdia

Papa Francisco
Papa Francisco sobe em altar para realizar missa na Praça da Revolução, em Havana, Cuba, em setembro de 2015. (Foto: EFE/Tony Gentile /POOL)

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A notícia do falecimento do Papa Francisco, ocorrido hoje, 21 de abril de 2025, aos 88 anos, me toca profundamente. Como psicólogo e professor católico, sinto-me chamado a refletir sobre o impacto que seu pontificado teve não apenas na Igreja Católica, mas em minha própria jornada de fé.

Uma experiência pessoal de amadurecimento na fé

Minha experiência pessoal com relação ao pontificado do papa Francisco foi uma experiência de amadurecimento na fé. Tive dificuldade considerável por ter me aproximado da fé em um momento de grande polarização política, quando avançavam pautas prejudiciais aos valores cristãos - aborto, eutanásia, propostas totalitárias. Nesse contexto, inicialmente esperava um papa mais beligerante e direto contra essas questões, um papa "conservador", por assim dizer.

Com o tempo, entretanto, cresci e amadureci espiritualmente. Compreendi que a Igreja não se limita ao momento histórico específico, que o papa não é apenas o líder do presente, e que cada palavra e gesto precisa ser entendido em uma amplitude maior. Um eco de serviço, de missão e, principalmente, de eternidade - uma eternidade que transcende qualquer momento histórico singular. As palavras do Santo Padre ecoam para além das contingências imediatas, sem deixar de se manifestar sobre questões contemporâneas importantes.

Assim, posso dizer que, graças a Deus, ainda durante sua vida, aprendi a amá-lo verdadeiramente. Hoje, diante de seu falecimento, embora profundamente sentido, encontro consolo ao reconhecer que ele deixou uma marca indelével de esperança, misericórdia e uma compreensão autêntica da Igreja.

O papa dos contrastes polares

Papa Francisco foi o papa dos contrastes, não no sentido paradoxal de contradições irreconciliáveis, mas no sentido que entendia Romano Guardini, sobre o qual o próprio papa Francisco fez sua tese de doutorado. Os polos que aparentemente se opõem, na verdade, constituem uma única realidade harmônica. Francisco sempre trabalhou nessa perspectiva dialética, onde opostos aparentes se unem em uma realidade coesa e significativa.

Isso ficou evidente durante todo o seu pontificado: quando parecia progressista para alguns, manifestava aspectos que o aproximavam de posições tradicionalmente conservadoras, e vice-versa. Esta é a beleza dos contrastes polares no pontificado do Papa Francisco - não contradições, mas complementaridades.

A dialética polar e a influência de Romano Guardini

Como observa Massimo Borghesi no livro Jorge Mario Bergoglio: Uma biografia intelectual, "a dialética de Bergoglio é, a diferença da de Hegel, uma dialética 'aberta'. Porque suas sínteses sempre são provisórias, devem ser sustentadas e reconstruídas cada vez, e porque a reconciliação é obra de Deus e não primariamente do homem. Isto explica sua crítica a uma Igreja 'autorreferencial', encerrada em sua própria 'imanência', marcada pela dupla tentação do pelagianismo e do gnosticismo".

O próprio papa Francisco reconheceu essa influência: "Romano Guardini me ajudou com um livro dele muito importante para mim, A oposição polar. Ele falava de uma oposição polar em que os dois polos estão em tensão, mas esta tensão não deve ser resolvida. Não se trata de uma dialética que supera para alcançar uma síntese, mas uma tensão permanente entre opostos".

Para além do cristianismo katecóntico: uma Igreja aberta

Ao longo desse tempo, interessei-me pelo tema do chamado cristianismo katecóntico - as tentativas de configurar uma Igreja nos moldes de um “império cristão”, estruturada como suporte social da mensagem religiosa, conforme interpretado na noção de "katéchon" na teologia política de Carl Schmitt.

Na perspectiva katecóntica, a Igreja assume a função de "barragem" contra a dissolução social, alinhando-se com estruturas políticas como garantia de ordem. O katéchon, termo grego que aparece na Segunda Carta aos Tessalonicenses, composto de kata ("para baixo") e echo ("ter ou segurar"), sugere algo que "contém ou prende", sendo compreendido na tradição teológica como uma força que retém ou atrasa a manifestação do caos ou do mal no mundo.

Papa Francisco, no entanto, representa uma ruptura decisiva com essa visão. Sua abordagem está mais alinhada com o que Laise Sales Pinheiro, em sua tese "Desejo, violência e Cristianismo", identifica como uma mudança de paradigma na relação entre Igreja e sociedade. Esta transformação representa uma superação da "hipertrofia magisterial", em que a Igreja busca constantemente interferir e julgar os processos políticos e sociais.

Em vez dessa abordagem, Francisco promoveu o reconhecimento da "justa autonomia da esfera política e civil", permitindo o desenvolvimento de um ethos próprio nos cristãos leigos, que não são instrumentos passivos da hierarquia, mas agentes responsáveis na transformação do mundo.

Esta visão se alinha com a transformação histórica do cristianismo que Jacinto Choza descreve em sua "Metamorfosis del cristianismo", onde demonstra como o cristianismo evoluiu de um sistema hierárquico de poder para uma religião de testemunho pessoal na era contemporânea. Francisco encarnou esse cristianismo transformado, que não busca poder político direto, mas influência cultural e espiritual através do testemunho autêntico dos fiéis.

Como sugere a análise de Pinheiro, a contemporânea secularização do Estado coincidiu com um processo de desclericalização da Igreja, fenômeno que Francisco aprofundou significativamente. Para ele, a tarefa da Igreja na história não é impor um projeto político específico, mas testemunhar uma verdade espiritual que, mesmo não sendo um "fato" empiricamente verificável, permanece como referência moral para aqueles que a acolhem livremente.

Quando Francisco mencionou que havia muitos que desejavam a sua morte e desejavam a volta da Igreja do grande inquisidor, estava se referindo precisamente à resistência contra esta renovação eclesial. Cada vez mais, ao conhecer o papa Francisco e compreender sua mensagem, percebi que essa tendência de afastamento da concepção katecóntica da Igreja não era exclusiva dele, mas uma continuidade dos papados recentes, embora tenha se radicalizado em seu pontificado.

A defesa da vida e o apelo pela paz: mensagens para todos

Na sua última mensagem Urbi et Orbi na Páscoa de 2025, Francisco expressou com clareza sua visão integral sobre a dignidade da vida humana, afirmando:

"Cristo ressuscitou! Neste anúncio encerra-se todo o sentido da nossa existência, que não foi feita para a morte, mas para a vida. A Páscoa é a festa da vida! Deus criou-nos para a vida e quer que a humanidade ressurja! Aos seus olhos, todas as vidas são preciosas! Tanto a da criança no ventre da mãe, como a do idoso ou a do doente, considerados como pessoas a descartar num número cada vez maior de países."

Ao mesmo tempo, como defensor da paz, advertiu:

"Gostaria que voltássemos a ter esperança de que a paz é possível! A partir do Santo Sepulcro, Igreja da Ressurreição, onde este ano a Páscoa é celebrada no mesmo dia por católicos e ortodoxos, se irradie sobre toda a Terra Santa e sobre o mundo inteiro a luz da paz. Sinto-me próximo dos cristãos que sofrem na Palestina e em Israel, bem como do povo israelita e palestino. É preocupante o crescente clima de antissemitismo que se está a espalhar por todo o mundo. E, ao mesmo tempo, o meu pensamento dirige-se ao povo, em particular, à comunidade cristã de Gaza, onde o terrível conflito continua a gerar morte e destruição e a provocar uma situação humanitária dramática e ignóbil. Apelo às partes beligerantes que cheguem a um cessar-fogo, que se libertem os reféns e se preste assistência à população faminta, desejosa de um futuro de paz!"

Essas declarações ilustram perfeitamente como Francisco transcendia as divisões políticas convencionais, falando simultaneamente a diferentes sensibilidades, pois compreendia que "a Igreja não é da esquerda e nem da direita".

Uma Igreja em saída para a transcendência

O papa Francisco nos legou uma mensagem clara de uma Igreja de misericórdia, esperança e abertura, em contraste com uma Igreja fechada, katecóntica, que busca se estabelecer como projeto de poder secular. Sua mensagem e missão apontam para algo maior, para a transcendência.

Esta perspectiva reconhece, conforme a análise de Pinheiro, que o poder da Igreja não é essencialmente político ou temporal, mas fundamentalmente espiritual, manifestando-se principalmente através do ensino da doutrina e da administração dos sacramentos. A aceitação da secularidade do Estado não significa uma harmonia absoluta entre Igreja e Estado, mas estabelece as condições para um "conflito construtivo" baseado no reconhecimento mútuo de autonomia.

Jacinto Choza complementa essa perspectiva ao mostrar como o cristianismo contemporâneo passou por uma metamorfose que o distanciou das estruturas de poder, transformando-o em uma religião de testemunho pessoal e compromisso ético. O papa Francisco nos convidou constantemente a olhar para os problemas atuais com os olhos fixos na eternidade, sem nos limitarmos às soluções imediatistas ou alianças políticas circunstanciais.

Em sua perspectiva, a Igreja tem uma palavra que ecoa pela eternidade. As soluções não se encontram nas alianças políticas momentâneas ou em posicionamentos partidários, mas na fidelidade ao evangelho. Como ele mesmo afirmou na mensagem de Páscoa: "Quem espera em Deus coloca as suas mãos frágeis na mão grande e forte d'Ele, deixa-se levantar e põe-se a caminho: juntamente com Jesus ressuscitado, torna-se peregrino de esperança, testemunha da vitória do Amor e do poder desarmado da Vida."

Um legado de esperança e reconciliação

Neste momento de despedida, reconheço que o papa Francisco deixou um legado de profunda transformação na Igreja - não por impor inovações doutrinárias, mas por recuperar a essência do Evangelho e apresentá-la de forma acessível ao homem contemporâneo.

A Igreja contemporânea, como sugere a análise de Pinheiro, chegou a um amadurecimento que lhe permite reconhecer a legitimidade de uma ordem social democrática, mesmo quando esta ocasionalmente produz soluções que podem ser consideradas moralmente problemáticas do ponto de vista cristão. Esta compreensão é fruto de uma elaboração historicamente amadurecida sobre a autonomia da ordem temporal, representando um significativo avanço na relação entre a Igreja e o mundo.

Seu chamado constante à misericórdia, à proximidade com os pobres e marginalizados, à simplicidade evangélica e ao diálogo com todos, mesmo os mais distantes, nos mostra uma Igreja que não teme se aproximar das "periferias existenciais" e geográficas do mundo. Hoje, enquanto o mundo se despede de Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, permaneço grato por ter tido a oportunidade de crescer na fé durante seu pontificado e por ter aprendido a amá-lo em vida, reconhecendo sua sabedoria que transcendia as divisões superficiais de nosso tempo, sempre apontando para a eternidade.

Hugo Mesquita é psicólogo clínico, consultor técnico legislativo da Câmara Legislativa do Distrito Federal e professor da Faculdade Mar Atlântico.

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