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Já foi Auf Wiedersehen, até a vista; depois, Alles Blau, tudo azul; mais recentemente, a expressão alemã mais popular no Brasil passou a ser Das Auto, o carro, honrosa referência à linha de automóveis fabricados pela Volkswagen, não tão luxuosos como os Mercedes ou BMW, porém sólidos, acessíveis, duráveis – padrão Alemanha: confiável e correto.

A falsificação dos resultados dos testes de poluição através de um software instalado nos carros movidos a diesel gerou o maior escândalo da indústria automobilística mundial, obrigando o gigante de quase 80 anos a fazer um colossal recall de cerca de 11 milhões de carros em todo o mundo. Junto veio uma devastadora desvalorização de suas ações, pedido de demissão do presidente do grupo e o inescapável efeito dominó que maculou a imagem política, econômica e moral do país-milagre.

Numa hora que deveria ser marcada pela busca da verdade, fomos enfiados num gigantesco faz-de-conta

Intoxicados pela ótica e pela semântica americana, estamos agarrados ao termo recall, fixados na consequência da insana burla tecnológica, esquecidos do fato em si, seus significados e as evocações que produz na comunidade mundial. A mídia alemã designa o episódio como “VW-Skandal” (Escândalo Volkswagen), evidentemente mortificada com o seu aspecto moral.

Kaputt (em alemão, ruína ou debacle) foi o título de um romance-reportagem publicado em 1944 que converteu o jornalista italiano Curzio Malaparte numa estrela literária graças à sádica maestria em evocar o clima de horror e perturbação daquele fim da guerra. Ex-fascista convertido ao comunismo, Malaparte flagrou com nojo e fascinação os escombros de uma civilização apodrecida, ainda insepulta.

Ironicamente, o atual kaputt não foi produzido por um país arruinado ou alucinado. Ao contrário, o capitalismo alemão é dos menos selvagens e mais inovadores, fortemente impregnado pela longa convivência com a social-democracia e com os valores que sempre permearam a cultura alemã antes do inferno nazista. Angela Merkel simboliza uma era de convergências pragmáticas, pós-ideológicas, tolerantes (não obstante os surtos xenófobos de grupos de extrema-direita).

Tal como importantes corporações alemãs, a Volkswagen é uma empresa que se pretende verde, comprometida com a preservação ambiental e a defesa da sustentabilidade. O diabólico projeto de falsificação de dados – digno de um filme de ficção científica – foi empreendido pela subsidiária norte-americana para driblar as exigências locais e abocanhar um mercado sensível às questões ecológicas.

E, como se não bastassem infortúnios, a revelação da trapaça ocorre justamente na véspera da visita aos Estados Unidos do papa Francisco, o mais verde de todos os pontífices, militante apaixonado pela causa da preservação da espécie humana.

A Volks, a Alemanha, a indústria automobilística mundial e as tecnologias irresponsáveis estão kaputt – partidas, rotas, arruinadas, deterioradas. Numa hora que deveria ser marcada pela busca da verdade, fomos enfiados num gigantesco faz-de-conta, cada vez mais amplo, espesso, indevassável. Por casualidade ou causalidade, tudo nos aproxima do tenebroso kaputt de 1944 que pensávamos reparado. Falta muito.

Alberto Dines é jornalista.
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