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Ulysses Guimarães ergue um exemplar da Constituição no dia de sua promulgação, em 5 de outubro de 1988.
Ulysses Guimarães ergue um exemplar da Constituição no dia de sua promulgação, em 5 de outubro de 1988.| Foto: Arquivo Agência Brasil

A promulgação da Constituição brasileira de 1988, marcante momento da história republicana, ainda que não isenta de críticas e desabonos, é agora celebrada com justo motivo, celebrada, vale dizer, no sentido de lembrar e enaltecer. A construção coletiva do entendimento nacional e superação de diferenças que aconteceu na época da elaboração da nossa Carta Maior, porém, vem sendo ofuscada na atualidade pela polarização corrosiva pelo novo normal que intoxica e contamina a reflexão histórica sadia e o raciocínio construtivo.

Vivíamos a chamada década perdida, os fragorosos anos de 1980, de sucessivas crises nacionais e internacionais, de reiteradas decepções políticas e econômicas. Com o mundo então desatrelado da Guerra Fria e a caminhar resoluto em direção da globalização,  vivia-se (o que parece impensável hoje) sem  computadores e celulares. Não havia ainda a instantaneidade de informação e de comunicações, o avanço radical que viria a subverter essências, valores e comportamentos – a revolução silenciosa que desaguou na modernidade líquida de Zygmunt Bauman, o presente espantoso que vivemos.

Com corpo presidencialista em roupas parlamentaristas, prevalecem ao final as inexcedíveis virtudes que a Constituição contém.

Na América Latina, foram tempos de restauração paulatina de democracias, com as sociedades atônitas em busca de reconstrução; no mais, tudo valia pela reconquista da democracia perdida, pela inserção internacional e pela busca de progresso e bem estar econômico. Era um período sem fronteiras e sem dogmas, de acordo com o espírito do tempo em que caíam muros e ideologias.

No Brasil,  quando instalou-se a Assembleia Nacional Constituinte, em 1986, o panorama econômico era desolador: hiperinflação de três dígitos, estagnação, instituições frágeis, com sucessivos planos com nomes de ministros e siglas indexadoras de preços voláteis, a par de brutal dívida externa. Havia constantes mudanças de moeda, com dinheiro carimbado, dinheiro velho e mesmo dinheiro novo. Como na melhor literatura fantástica, certa vez, de surpresa, foi-se dormir em cruzeiros e acordou-se em reais. No mais, exaurido o milagre brasileiro, o aviltamento do campo gerava êxodo rural e inchaço de cidades, com migrações desordenadas e com hipertrofia de periferias e grotões.

Nesse espectro de sinistra incerteza, todos pareciam reivindicar espaço e queriam ver-se expressamente presentes e citados na nova Lei Maior. E foi em tal cenário de desordem de fundo e de forma, mas com voluntarismo e esperança, que desenvolveram-se os trabalhos constituintes, a bem refletir as contradições, tendências e tensões do país complexo e que assumia suas formas. A contar com a perspectiva do tempo, verifica-se, a par de todo um rol de fatores externos benéficos, a nova ordem constitucional foi um aporte essencial à sofrida e provada governança e governabilidade que se produziram a partir de então.

Não obstante notórios vícios e falhas de origem, com conteúdo erroneamente detalhista, declarativo e programático – já se foram mais de centena de emendas – ainda há muito por fazer, como a auspiciosa reforma tributária em curso. Com corpo presidencialista em roupas parlamentaristas, prevalecem ao final as inexcedíveis virtudes que a Constituição contém, a incluir valores da pós-modernidade que sequer tinha claramente nascido. São exemplos disso  a vanguarda do texto na área social, ambiental e de organização dos poderes de Estado, a criar e fortalecer instituições vitais à resistência e resiliência da ordem democrática. Vale lembrar ainda a engenhosa fórmula de cláusulas pétreas em matérias indisponíveis, referentes à forma de Estado e a direitos e a liberdades e garantias fundamentais.

Conquista da cidadania, a compor e buscar harmonizar interesses dos mais diversos, efeito da realidade sincrética e plural de seu povo múltiplo, a Constituição brasileira de 1988 representa um desafio constante. Pela frente, o inefável Brasil residual e insolúvel sempre por fazer. Naquele outubro de 1988, na Câmara Federal, ouvia-se afinal do doutor Ulysses : “Está promulgada a Constituição da liberdade!”. Em plenário contaminado pela emoção, as forças políticas confraternizavam como efetiva assembleia plural e republicana. Todos os espaços e forças políticas em comunhão, com conquistas e derrotas, cientes de ser a Constituição um compromisso maior de confiança e de pacificação. Não havia inimigos, só adversários. Era o final de um dia chuvoso, mas, no tempo histórico, já amanhecia um novo Brasil.

Jorge Fontoura é advogado e professor.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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