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Abdel Fattah al-Burhan, o novo chefe do conselho militar assumindo no Sudão após a queda do presidente Omar al-Burhan.
Abdel Fattah al-Burhan, o novo chefe do conselho militar assumindo no Sudão após a queda do presidente Omar al-Burhan. Foto: Sudan News Agency/AFP (Editorial Use)| Foto: AFP

Trinta anos são uma vida. Em 11 de abril, meses de protestos populares pacíficos finalmente forçaram o Exército sudanês a depor o presidente Omar Hassan al-Bashir. Parece que faz um século que eu estava em Cartum, a capital, logo depois de al-Bashir ter deposto o primeiro-ministro Sadiq al-Mahdi em um golpe de Estado não violento, apoiado pelos islamitas e o Exército, em dezembro de 1989.

Seis meses depois disso, o clima já mudava do choque para a resignação sombria. Não passava pela cabeça de ninguém, nem nos sonhos mais loucos, que a nova liderança durasse três décadas.

Eu não sabia na época que a Cartum que eu conhecia ia desaparecer: as luzes noturnas, os cinemas, as sorveterias. A cidade foi cenário da minha infância, feliz na maior parte do tempo, embora pontuada de tempos em tempos pela incerteza de acordar ao som dos tiros da artilharia e do revide a distância.

Com o golpe, fiquei dias sem ir à escola. Vozes altas e enfáticas no rádio anunciavam algum plano complicado para restaurar a ordem. O primeiro grande golpe veio dois anos após a independência, em 1958; o segundo levou o coronel Gaafar al-Nimery ao poder em 1969, onde permaneceu até 1985. Os dois episódios foram encerrados por levantes populares. Nada, entretanto, nos preparou para o regime de al-Bashir.

Em 1989, o islã politizado estava em ascensão; por todo o Oriente Médio, ditadores envelhecidos se agarravam ao poder com as bênçãos e o apoio do Ocidente. Dez anos após a Revolução Iraniana, a Guerra Fria chegava ao fim. No Afeganistão, os mujahidin, com suporte dos EUA e do Paquistão e verba saudita, derrotavam a União Soviética.

Para muita gente na região, a religião parecia ser a única oposição viável à corrupção moral e econômica. Uma nova interpretação, mais conservadora, saía do outro lado do Mar Vermelho e chegava ao Sudão, levando consigo os códigos sauditas de vestimenta e intolerância; era uma nova versão da fé, bem diferente daquela que os sudaneses praticaram durante séculos, sincrética e inspirada no sufismo.

A personificação desse novo espírito era Hassan al-Turabi, o ideólogo por trás do golpe de al-Bashir, um político medíocre com um sorriso carismático e doutorado na Sorbonne. Segundo sua visão deturpada, seríamos a vanguarda de uma renascença islâmica; a religião teria o poder de acabar com as diferenças de classe, etnia e riqueza.

A classe média instruída – políticos, escritores e artistas, acadêmicos e profissionais liberais – virou alvo das forças de segurança. Os mais sortudos iam presos; os outros, para as famosas "casas fantasmas", onde eram torturados e desapareciam sem deixar rastros. Era uma expurgação com ares de purificação inquisitorial.

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É difícil descrever a brutalidade da primeira década de governo de al-Bashir, de 1989 a 1999, sem parecer exagero ou caricatura: a guerra no sul foi classificada como jihad; o serviço militar se tornou compulsório; o uniforme escolar passou a ser camuflado. Quem morria na guerra era considerado mártir. Cartum recebeu uma leva de assessores militares iranianos, além de todos os tipos de grupos militantes e radicais, incluindo um tal de Osama bin Laden.

Minha família foi levada de roldão. Meu pai publicava um jornal diário de língua inglesa com outros dois jornalistas veteranos, mas o Sudan Times foi fechado durante o período de repressão à imprensa, em 1990 – e ele foi aconselhado a sair do país se quisesse evitar a prisão.

Encontramos meio que um refúgio no Cairo, ao lado de quase um milhão de outros sudaneses que também tinham fugido. O dia a dia era dominado por boatos e os relatos de horror levados pelos recém-chegados: o professor forçado a recitar o alfabeto pelos ex-alunos que se tornaram seus torturadores; o filho do velho jornaleiro que foi pendurado em um ventilador de teto e apanhou até ter a espinha quebrada.

Cada história nos oferecia e depois nos roubava a possibilidade de volta. Lembro-me da expressão no rosto do meu pai quando um amigo antigo de Cartum lhe explicou por que ele ainda não podia voltar, mesmo depois de cinco anos fora.

Ao fim da primeira década, a poeira começou a baixar. A decepção com o islã como o "grande nivelador" começava a ser assimilada; a insurgência passou a pipocar em locais como Darfur, o Mar Vermelho e Kordofan; as divisões étnicas continuaram a crescer. Durante um tempo, quando os interesses chineses e malaios foram levados em consideração, uma pitada de pragmatismo acabou fazendo parte dos procedimentos.

Nos dez anos seguintes, o petróleo ganhou espaço e fôlego; os preços da terra dispararam; ergueram-se prédios novos e carros de último tipo apareceram nas ruas.

A queda de al-Bashir é um momento que parece cheio de possibilidades infinitas

E, apesar de todo o dinheiro, nada de substancioso foi atingido. Construíram refinarias e represas, mas não havia uma estratégia agrícola e/ou econômica de longo prazo; os serviços públicos ficaram defasados; médicos e advogados viram sua subsistência minguar. Setenta por cento do orçamento público passaram a ser canalizados para as Forças Armadas. Os que eram próximos a al-Bashir ficaram ricos; o resto sofria.

Quando saí de lá, no início de 1990, nem sonhava que levaria mais de 16 anos para voltar. A essa altura, meus pais já tinham falecido sem ver o fim do regime que mudou completamente a vida deles. Meu pai se recusou terminantemente a voltar enquanto "eles" ainda estivessem no poder. Nós o enterramos em um cemitério na região norte de Londres, cidade para onde se mudou em busca de tratamento médico, escolhendo o exílio perpétuo em vez da concessão.

A queda de al-Bashir é um momento que parece cheio de possibilidades infinitas, uma chance de remissão e recuperação. Não há opção fácil de caminho a seguir – mas ele começa com a verdade, a liberdade necessária para acabar com a ilusão sob a qual o Sudão se viu cego por tanto tempo.

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A imagem que fica, a que vem rodando o mundo nos últimos dias, é de esperança. Mostra uma jovem usando não as roupas conservadoras das últimas décadas – as longas saias e os hijabs firmemente presos –, mas a túnica branca tradicional e elegante, simbolizando as mulheres poderosas e politicamente ativas dos anos 1960 e 1970.

Fiquei animado com as imagens da vigília que varou a noite: o povo, pacífico, na porta dos quartéis em plena madrugada, cantando canções antigas, enquanto uma figura solitária tocava saxofone. Elas me levam para outra época, em que acreditávamos no país, em nós mesmos. Falam de perseverança do espírito.

Para que essa revolução dê certo, ela tem de se livrar não só do regime, mas também da estagnação que domina a política há décadas e que transformou a indiferença em ideologia.

Há de haver uma transformação no espectro político que permita que os jovens se revelem e se destaquem para representar não só a diversidade do país, como também seu verdadeiro potencial. Só podemos esperar e torcer.

Jamal Mahjoub é o autor de "A Line in the River: Khartoum, City of Memory" e escreve seus romances sob o pseudônimo Parker Bilal.The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.

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