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Bolsonaro discursou na abertura do Debate Geral da 74ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas.
Bolsonaro discursou na abertura do Debate Geral da 74ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas.| Foto: Alan Santos/PR

"O problema é que ele é xucro". Variações desta sentença têm sido emitidas aqui e ali por eleitores de Jair Bolsonaro que tentam oferecer uma justificativa para o desarranjo verbal do presidente.

Esta rudeza – ainda na boca de apoiadores – vem acompanhada por boas intenções e tem a virtude da transparência, da superioridade moral dos homens que falam o que pensam, sem concessões, sem os freios impostos pelo "politicamente correto". O presidente conta com uma espécie de rede de solidariedade interpretativa que faz a grosseria palaciana se passar por franqueza virtuosa. Não é pouca coisa, não é para qualquer um.

É verdade que a eleição de Bolsonaro tem uma cara de disrupção, de novidade e de ineditismo. "Contra tudo e contra todos", ele costuma lembrar. Mas é também verdade que o eleitorado tem lá suas manias, e uma delas é ter uma paciência que opera segundo a lógica dos telefones pré-pagos: os créditos minguam na medida em que você os usa. A boa vontade do eleitor estará cada vez menos disponível, até o ponto de se restringir à seita de fanáticos que voluntariamente tocarão violino enquanto o transatlântico do bolsonarismo colide com a dureza da realidade.

A pergunta que sobra é: por que o presidente insiste? Por que apostar numa verborragia adolescente que tem corroído sua imagem junto a uma parcela significativa da população?

O presidente conta com uma espécie de rede de solidariedade interpretativa que faz a grosseria palaciana se passar por franqueza virtuosa

A resposta não é exatamente simples e é provável que nem o presidente a saiba com precisão. Há quem aposte na ideia da “cortina de fumaça”, segundo a qual o escândalo do momento serve para encobrir decisões e atitudes bastante concretas, como se o bolsonarismo trabalhasse por um objetivo maior, não exatamente declarado, e estivesse a nos distrair enquanto toca sua agenda “real”.

A tese é sedutora e talvez tenha uma boa dose de realidade. Mas abraçá-la integralmente implica em abrir mão de um elemento central para compreender Bolsonaro e o governo que aí está: eles não têm lá muita ideia do que fazem. O poder lhes foi conferido para um fim até que singelo – o apedrejamento da Geni petista –, e aí o bolsonarismo acorda no dia 1.º de janeiro e se dá conta de que dentro do pacote há como brinde um país caótico a governar. E não existe plano, não existe programa, não existe projeto. O que resta é uma tentativa de continuar em campanha. Constantemente. Exaustivamente.

Importante lembrar também que há um mercado eleitoral do absurdo, um nicho de boçalidade sendo disputado desde já. As eleições do ano passado mostraram que este é um filão eleitoralmente muito atrativo que demanda doses diárias de justiçamento policial, fundamentalismo religioso, discurso moralizante e ataques às políticas identitárias. Os pulinhos de alegria do governador do Rio de Janeiro ao celebrar a "neutralização" de um sequestrador por um sniper; a retirada de circulação de livros de educação básica em São Paulo que "defendem" a ideologia de gênero; e a tentativa de censurar uma revista que traz o desenho de um beijo gay são episódios para lembrar o presidente de que é necessário performar porque outros estão vestindo o neoprene do obscurantismo para surfar essa onda. E talvez seja por isso que ele esteja sempre a aumentar o tom, sempre a nos chocar com invejável competência.

Mas há outro elemento, possivelmente o mais perigoso, para entender a retórica bolsonarista. A pista foi dada há alguns dias pelo ministro Paulo Guedes em suas escusas por ter chamado de feia a primeira-dama francesa em uma palestra. No evento, Guedes ratificou a impressão de Bolsonaro sobre a aparência de Brigitte Macron e fez a plateia rir. Na justificativa, disse que é um "brasileiro típico", que "pisa na jaca" e "rola na lama". O ministro da Economia acredita que falar esse tipo de coisa tipifica um brasileiro; seria este um dos traços que nos caracteriza como povo. A explicação de Guedes diz mais do que aparenta e deveria ser lida como bula para entender o ethos do grupo que chegou ao poder.

Bolsonaro e seu staff foram meticulosos na construção da imagem do homem comum, do Davi que se voluntariou a enfrentar o gigantismo de um sistema tomado pela corrupção. As transmissões pela internet que apostaram numa estética caseira durante a campanha e a recepção "simples" oferecida ao então conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, John Bolton, logo nos primeiros dias de governo se inserem num esforço de mostrar que o presidente é gente da gente, um brasileiro "típico". Camisas de futebol falsificada, chinelos em fotos oficiais, um "ihuuu" ao ironizar um provável adversário… Parasse por aí, estaríamos diante de um homem que se parece muito com muitos de nós. Mas não é só isso. Bolsonaro demonstra acreditar que vocaliza as opiniões e angústias do homem "real", que está a dizer o que "todo mundo" pensa, como um porta-voz dos nossos fantasmas interiores. Em suma, Bolsonaro acredita que somos e pensamos como ele e, por isso, sente-se à vontade em sua missão. Mais: sente-se obrigado a dizer suas (nossas) verdades. “Pergunta para as vítimas dos que morreram lá” foi a sugestão dada a um repórter que pediu a opinião do presidente sobre a carnificina ocorrida em julho no presídio de Altamira, no Pará. O presidente tem certeza de que todas as pessoas que já foram vítimas da violência urbana nutrem o desejo de que seu agressor seja degolado e tenha a cabeça chutada por presos de facções rivais.

Mas será que somos realmente assim? A história ensina que não é prudente botar muita fé na humanidade, mas deve haver um erro de cálculo aí. Aquilo que Bolsonaro presume que somos existe, é fato. Está em todos lugares, em todas as famílias, em todos os nichos sociais. É improvável, contudo, que haja no Brasil uma maioria de gente que se regozije e encontre identificação nas falas mais absurdas de Bolsonaro. As pesquisas de satisfação – estas que contam com descrédito do presidente – trazem sinais eloquentes de aumento da sanidade da população. Se houvesse essa maioria, o Brasil não teria virado a Venezuela, como gostam de sugerir os arautos do apocalipse. Estaríamos mais próximos daquilo que Dante descreveu como o quinto círculo do Inferno, onde, irados e mergulhados na lama, mordemos e chutamos uns aos outros.

Ainda não chegamos lá, apesar de Bolsonaro.

Elton Frederick é mestre em Ciências Sociais e especialista em Política e Relações Internacionais.

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