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O Brasil precisa refundar sua Corte Constitucional

O STF abandonou a autocontenção, virou ator político e usa o direito como arma. O Brasil precisa urgentemente de uma Corte Constitucional. (Foto: Nelson Jr./SCO/STF)

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A arquitetura institucional das democracias constitucionais contemporâneas adotou um pilar fundamental para assegurar a continuidade e a estabilidade democrática: as cortes constitucionais.

Tais tribunais foram projetados para exercer o papel de contrapeso institucional por excelência e devem impor limites jurídicos ao poder, proteger os direitos fundamentais das minorias e assegurar a observância dos ditames constitucionais.

As cortes constitucionais devem prezar pelas virtudes passivas no exercício da jurisdição, de modo a cultivar a autocontenção e evitar decidir certas questões, mesmo quando têm competência para fazê-lo. Isso porque, muitas vezes, a sociedade não pacificou a compreensão sobre o caminho a ser tomado em determinados casos, e os Poderes eleitos ainda estão em processo de amadurecimento e estudo do tema.

É claro que haverá casos nos quais as severas violações dos direitos fundamentais, somadas a um cenário de inação dos demais Poderes, devem demover a corte constitucional de sua inércia e autocontenção, ensejando decisões com grande repercussão política. Contudo, tais hipóteses são exceções em uma sociedade que busca estabilidade política por meio da construção e da tomada de decisões pelos representantes populares no parlamento.

Para garantir e preservar a legitimidade judicial e evitar a banalização de sua atuação, a corte constitucional deve atuar sempre em deferência aos Poderes Legislativo e Executivo, os quais receberam legitimação direta do detentor do poder: o povo. Há diversos mecanismos que permitem à corte adiar ou recusar o julgamento de um caso, buscando evitar o ativismo judicial e promover o amadurecimento das questões em debate.

O conceito de virtudes passivas que devem ser cultivadas pelas cortes constitucionais baseia-se na ideia de que o tribunal, ao decidir não decidir, pode estar exercendo uma forma de sabedoria e prudência, permitindo que o debate democrático amadureça e que a sociedade alcance consensos orgânicos e duradouros (não impostos de cima para baixo) sobre questões complexas.

Nesse ponto, vale registrar que, muitas vezes, as questões tidas por relevantes em determinado momento da sociedade não receberam o selo de relevância a partir de um método democrático. Em outras palavras, não foi o povo que escolheu tal tema como importante para ser debatido e decidido naquele momento, mas a força do “lobby” de poderosos grupos de interesse (econômicos e/ou políticos) que pautaram a discussão pública.

É interessante notar que é comum tais grupos de poder possuírem meios de silenciar críticos, seja por meio da vedação da publicação e difusão de opiniões contrárias, seja pelo impulsionamento financeiro e midiático de opiniões alinhadas aos seus interesses. Tal manipulação do debate público gera efeitos sociais negativos ao limitar a circulação de ideias e criar falsos consensos que dependem de imposição forçada, via de regra, por decisão judicial.

O tribunal constitucional que, a cada provocação por parte de grupos políticos e econômicos dominantes, profere decisões sobre controvérsias ainda em fase de amadurecimento — e, com isso, impõe à sociedade uma interpretação constitucional prematura sobre determinado tema — acaba sendo capturado por tais grupos e se converte em agente político de primeira grandeza.

No Brasil, em razão da relação cruzada de controle estabelecida entre o Senado e o Supremo Tribunal Federal (STF) pela própria Constituição da República, observou-se, nas últimas décadas, verdadeira ausência de atuação de mecanismos de checks and balances sobre a Suprema Corte, na medida em que os membros do Senado se veem constrangidos em apontar disfunções e punir desvios dos membros do STF.

A ausência de controle e de limitação de poder sobre a corte constitucional brasileira tornou inativo o mecanismo imaginado pelo constituinte para servir de freio contra o ímpeto, por vezes autoritário, dos detentores do poder.

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Uma corte constitucional robusta e contida é o que diferencia uma democracia vibrante de um regime em que a vontade de um governante ou de um juiz se sobrepõe à lei, sem que qualquer consequência jurídica ocorra

Assim, o Supremo Tribunal Federal, órgão que deveria exercer a nobre função de corte constitucional, tem se afastado progressivamente de seu escopo, protagonizando uma expansão de poder que o transformou em ator político, imiscuindo-se em decisões do cotidiano da política e reescrevendo, à moda da conveniência do momento, as regras do jogo democrático. Essa metamorfose, que corrói a separação de poderes, pode ser observada em uma sucessão de episódios controversos.

O exemplo mais emblemático dessa anomalia institucional é o Inquérito (INQ) 4.781, conhecido como “inquérito das fake news”. Em flagrante violação do sistema acusatório brasileiro, o inquérito foi instaurado de ofício pelo então presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, sem qualquer provocação do Ministério Público, o titular da ação penal.

O relator, Ministro Alexandre de Moraes, foi designado por vontade e livre escolha do presidente da Corte, sem o devido sorteio, concentrando poderes investigatórios e judicantes. O procedimento segue em aberto há anos, mesmo após a Procuradoria-Geral da República (PGR) ter se manifestado pelo seu arquivamento, e permanece como uma espada sobre a cabeça de críticos da Corte, sem denúncia formal ou prazo para sua conclusão.

As decisões tomadas pelo relator em sede do inquérito, como censura de perfis sociais, prisões cautelares, congelamento de contas bancárias, recolhimento de passaportes, dentre outras, não são submetidas ao Colegiado, diante do entendimento consolidado na Corte de irrecorribilidade das decisões do relator em sede de inquérito.

Sob a égide desse inquérito, assistimos a atos de censura explícita, inclusive prévia, que julgávamos sepultados com o fim do regime militar. Jornalistas, cidadãos e veículos de imprensa foram alvos de decisões que determinaram a remoção de conteúdos e a proibição de manifestações, sem indicação de fundamentação, tempo de duração da medida ou possibilidade de recurso, em clara afronta à liberdade de expressão.

As medidas da Corte chegaram ao ponto de banir de todo o território nacional uma rede social meses antes das eleições de 2024, impondo multas e outras penalidades para qualquer cidadão brasileiro (partes integrantes ou não do inquérito) que utilizasse de subterfúgios tecnológicos para acessar a referida rede. Por alguns meses, o Brasil figurou ao lado da Coreia do Norte, China e Venezuela como um dos únicos países que baniram a rede social.

Em chocante contraste, vimos que o mesmo STF que deixou prescrever, nas últimas décadas, dezenas de denúncias de crimes contra parlamentares, conduziu com inédita e extrema velocidade julgamentos criminais em rito sumaríssimo contra cidadãos comuns, sem foro privilegiado, acusados de participação nos atos do 8 de janeiro de 2023.

Nesses processos, centenas de réus foram condenados a penas altíssimas, chegando a 17 anos de reclusão, em processos que demoraram poucos meses, sem que suas defesas tivessem direito à sustentação oral em plenário.

A discrepância de tratamento da Corte entre os processos de detentores de foro especial e os de cidadãos comuns escancara que a nossa corte constitucional se transformou em um tribunal político.

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O conjunto dessas ações configura o que a doutrina moderna chama de lawfare: o uso estratégico e abusivo do direito e dos procedimentos legais como arma para perseguir e neutralizar adversários. Conforme definem o ministro Cristiano Zanin Martins e Valeska Teixeira Zanin Martins (2019), o lawfare consiste no uso de manobras jurídico-legais como substituto da força armada, visando alcançar objetivos de natureza política, geopolítica, comercial ou militar.

É evidente que o campo político conservador/direita no Brasil tem sido o alvo preferencial dessa tática, criando um ambiente de insegurança jurídica e perseguição política judicializada.

A doutrina jurídica sempre alertou para os perigos do ativismo judicial desmedido, pregando a necessidade de autocontenção (judicial self-restraint). O Ministro Luís Roberto Barroso (2018), antes mesmo de presidir a Corte, escreveu sobre a importância de o Judiciário “evitar a politização excessiva” e “atuar de forma deferente em relação às decisões tomadas pelos outros Poderes”. Ironicamente, a Corte que hoje integra parece ter abandonado essa prudência.

Diante desse quadro desolador, fica claro que o Brasil precisa de uma refundação de sua Corte Constitucional. É imperativa uma reforma constitucional que redesenhe o STF e sua composição para resgatar sua legitimidade e função originais enquanto corte constitucional.

Medidas como a fixação de mandatos para os ministros (em vez do cargo vitalício), a ampliação das exigências de experiência acadêmica e judicial para ingresso, a adoção de processos de escolha mais democráticos e plurais — como listas tríplices formadas por diferentes instituições da sociedade civil —, a vedação de que parentes próximos e respectivos escritórios de advocacia atuem perante a Corte e a necessidade de aprovação por maioria qualificada do Congresso são essenciais.

Precisamos de mecanismos que impeçam que a Corte refundada se torne novamente um superpoder político, que isolem seus membros das pressões partidárias e que inviabilizem a prática do lawfare. A democracia brasileira precisa, urgentemente, de uma Corte Constitucional.

André Moreira Storck Nunes é Assessor judiciário do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), Mestrando pela Universidade FUMEC sobre o tema Desinformação e Liberdade de Expressão e graduado em Direito pela UFMG.

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