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Sede do STF pichada nos protestos de 8 de janeiro
Sede do STF em Brasília.| Foto: EFE/André Borges

Recentemente Eduardo Matos de Alencar escreveu sobre a necessidade de encontrarmos respostas eficazes de curto, médio e longo prazos para a situação calamitosa em que o país se encontra. Um dos eixos de resposta é a criação do que ele chamou de Novo Estado Brasileiro.

Esse Novo Estado Brasileiro não é a importação acéfala de modelos estrangeiros que nada ou pouco têm a ver com nossas tradições e circunstâncias históricas. Não se trata disso. Como ele deixa claro, o Novo Estado Brasileiro deve ser um esforço espiritual, intelectual e moral de construção de uma visão alternativa de país que respeite nossos valores e tradições, sem deixar de incorporar, naquilo que tiverem de valioso, outras experiências de organização político-social.

No caso do direito e das leis, é preciso recordar o que sempre foi o patrimônio comum dos povos do Ocidente influenciados pela herança romana.

Do mesmo modo, Rafael Nogueira falou também recentemente acerca da necessidade de que a direita nacional reconheça o papel civilizador do Estado, em especial no campo da cultura, ao invés de se deixar prender à falta de imaginação dos liberais e suas cantilenas sobre o Estado mínimo.

Aproveitando a oportuna ideia, a construção desse Novo Estado Brasileiro, com sua inegável função civilizadora, passa necessariamente pela superação da situação de amnésia em que nos encontramos já há algum tempo com relação ao papel do direito e das leis.

Não é o caso de se inventar a roda ou de se descobrir a pólvora. O que proponho aqui, na realidade, é algo que pode ser tido como uma espécie de maiêutica à la Sócrates. O objetivo é relembrar algo que, no fundo, toda gente sabe ou, pelo menos, sempre soube. No caso do direito e das leis, é preciso recordar o que sempre foi o patrimônio comum dos povos do Ocidente influenciados pela herança romana: a tradição clássica do direito ou, num termo mais técnico, o ius commune, isto é, o amálgama de direito romano, direito canônico e direitos locais que nos foi legado pela História e formou a base de nossa ordem jurídica.

A tradição vai dizer e ensinar que o papel do direito e das leis é a promoção do bem comum.

De acordo com essa tradição, o direito e as leis não são uma técnica maleável à disposição dos caprichos e das vontades dos governantes e partidos no poder. Muito menos estão a serviço do espírito revolucionário ou do engrandecimento usurário dos metacapitalistas. Ao contrário disso tudo, a tradição vai dizer e ensinar que o papel do direito e das leis é a promoção do bem comum.

Mas o que significa isso propriamente? O direito é uma ciência prática. Diferentemente do que ocorre com as chamadas ciências teoréticas, nas ciências práticas o que se almeja não é o puro e simples conhecimento contemplativo da verdade, mas uma ação moldada à luz do conhecimento adquirido. Saber o que é certo e o que é errado não basta. É preciso agir corretamente; é preciso que a ação seja ordenada pelo conhecimento do bem.

O papel do direito não é outro senão o de ensinar à multidão, por meio da disciplina da lei, o que é certo e o que é errado.

Mas como isso se dá no campo do direito? Aristóteles diz na Ética a Nicômaco que, em se tratando de ordenar a conduta das pessoas em sociedade, as exortações e admoestações em geral não vão muito longe. E aí, o papel do direito, enquanto ciência prática subordinada à moralidade política, não é outro senão o de ensinar à multidão, por meio da disciplina da lei, o que é certo e o que é errado. As pessoas são pedagogicamente incentivadas e, em alguns casos, obrigadas, por meio do direito e das leis, a ter um comportamento moralmente nobre.

Essa é a função por excelência do direito, segundo a perspectiva clássica: fazer as pessoas melhores, ou seja, contribuir, na medida do possível, para a elevação geral das condutas. A autoridade pública recorre à lei, que é a grande pedagoga da multidão. Como recentemente lembrou Adrian Vermeule, importante professor de direito da Harvard Law School, o direito é o professor de moralidade e bons costumes dos cidadãos.

A tradição clássica do direito vê a lei como especialmente vocacionada para esse tipo de função. S. Tomás de Aquino, ao articular sua definição de lei, diz que ela é um ditame da razão para o bem comum. Diferentemente do que ocorre com as concepções individualistas e liberais, todas de raiz positivista, na tradição clássica a lei é um instrumento de promoção da felicidade da comunidade política. Nesta felicidade da comunidade estão implicadas as felicidades dos indivíduos, de modo que o que se tem é uma felicidade comum da qual todos participam. A lei serve, promove e protege essa felicidade de todos que é o bem comum.

Ao contrário do que acontece hoje em dia, na tradição clássica a lei "visa o que é verdadeiramente bom para a comunidade política", pois, caso não seja assim, "fica imoral". E é justamente porque visa o bem comum que a lei pode legitimamente impor-se aos indivíduos e constrangê-los a agir bem: "[a imoralidade da lei decorre do fato] de não visar o que é o verdadeiro bem comum da comunidade à qual ela pretende, não obstante, impor-se". (Cf. Michel Bastit, O Nascimento da Lei Moderna: o Pensamento da Lei de Santo Tomás a Suarez.)

A lei não é o capricho arbitrário da autoridade, mas uma deliberação racional do legislador cujo propósito é ordenar a comunidade em vista do bem comum. O direito tem uma razão de ser própria: apoiar, promover e incentivar a vida feliz de toda a comunidade e a de todos os seus membros.

Mais ainda: a lei é um ditame da razão prudencial que especifica ou concretiza, segundo condições de tempo e lugar, os princípios gerais da justiça natural. Além disso, esses princípios gerais servem como guias para a interpretação e aplicação dos textos legais. O direito clássico não limita o direito à lei escrita. Ao contrário disso, segundo essa perspectiva, o direito positivo nada mais é do que uma materialização, de acordo com as exigências da situação concreta, do direito natural e do chamado direito das gentes (ius gentium).

Ao contrário do que acontece hoje em dia, na tradição clássica a lei "visa o que é verdadeiramente bom para a comunidade política", pois, caso não seja assim, "fica imoral".

Essa relação de coordenação entre o direito natural e o direito positivo é manifestada classicamente pelos termos ius e lex. As línguas românicas preservaram essa distinção do latim. No português, direito e lei; no espanhol, derecho e ley; no francês, droit e loi, e por aí vai. A lei (lex) manifesta e concretiza o direito (ius), mas não o esgota, nem limita. Cabe, portanto, à autoridade pública determinar racionalmente, por meio da lei, os princípios gerais e universais do direito natural, de forma a promover e garantir o bem comum da sociedade.

O bem comum, que é a vida feliz da comunidade, pode ser traduzido, para os fins práticos do direito, como o conjunto de condições necessárias e suficientes que permitam a todos os membros da comunidade uma existência de acordo com os preceitos da justiça natural. Esses preceitos são: viver honestamente, não prejudicar ninguém e dar a cada um o que é seu. Essas condições que possibilitam a vida em conformidade com a justiça natural, por sua vez, podem ser sumariadas na clássica tríade da paz, justiça e abundância.

O Estado é o agente institucional que, de posse dos mecanismos do direito público, regula a sociedade.

Nesse cenário, o papel da autoridade pública é fundamental. Ela tem o natural e clássico poder-dever de agir no sentido de promover, por meio da aplicação da lei, o atingimento dessas condições que, por seu turno, vão possibilitar a materialização do bem comum da sociedade e dos seus respectivos membros. O Estado é o agente institucional que, de posse dos mecanismos do direito público, regula a sociedade em vista da vida bem ordenada, de modo a permitir que as pessoas e a comunidade possam florescer e amadurecer. Uma burocracia administrativa competente, profissional, vocacionada, enérgica e bem orientada é indispensável para isso.

Não se trata de absorver o indivíduo na comunidade, nem, ao contrário, de dissolver a sociedade numa poeira de indivíduos atomizados e desenraizados. O florescer da sociedade é o florescer dos indivíduos. O bem da sociedade racionalmente ordenada para a vida feliz é igualmente o bem dos indivíduos individualmente considerados. O bem comum é universal e é o mesmo, tanto para a comunidade, quanto para os indivíduos. O bem da comunidade não se opõe ao bem dos indivíduos. Como nos recorda a máxima clássica, o bem comum é, de fato, o maior bem dos indivíduos.

A definição clássica do direito expressa essa concepção: é a arte do bom e do justo.

Além disso, o bem comum não se confunde com o bem do Estado. Diferentemente das ideologias de massa totalitárias, o Estado, na perspectiva da tradição clássica, é uma parte ou um elemento de uma ordem maior que é a própria comunidade política. O Estado não absorve a sociedade, muito menos o indivíduo. O respeito ao princípio da subsidiariedade é ínsito à noção clássica de bem comum. Há toda uma moralidade institucional a ser respeitada pelos diversos agentes públicos: um não pode tomar o lugar do outro; muito menos tolher a legítima iniciativa dos indivíduos e dos grupos intermediários.

Todas essas ideias são parte da tradição clássica do direito, a tradição do ius commune, que nos foi legada pelos jurisconsultos da antiga Roma. Um dos mais célebres desses sábios, Ulpiano, deixa claro, em famoso texto, que o objetivo do direito, e de toda a arte dos jurisperitos, é o de melhorar os homens, fazendo com que ajam de maneira mais digna e nobre. A definição clássica do direito expressa essa concepção: é a arte do bom e do justo.

Hoje o direito serve, não ao bem comum, mas aos interesses da elite econômica metacapitalista ou aos de grupos ideológicos.

Segundo eles, a lei deve induzir os indivíduos à boa conduta, visto que a grande maioria se move apenas em razão do medo do castigo. Sendo a lei um preceito da razão, ela necessariamente ordena; e o faz em vista do fim que é o bem comum. S. Tomás reforça isso ao dizer que o objetivo da lei é educar os homens gradativamente na virtude, fazendo com que, pouco a pouco, elevem o nível de seus costumes.

A ordem liberal-positivista, em oposição a isso, perverte e corrompe o sentido próprio e verdadeiro da lei, transformando-a em mero instrumento técnico a serviço de finalidades extrínsecas ao direito e à ordenação racional da vida em sociedade. Hoje o direito serve, não ao bem comum, mas aos interesses da elite econômica metacapitalista ou aos de grupos ideológicos dotados de vastos recursos e articulação junto à mídia e à intelligentsia universitária. Tornou-se, segundo Michel Villey em Filosofia do Direito, "uma técnica sórdida".

Não sem motivo o brasileiro comum desconfia da lei e vê com maus olhos a atuação de juízes, advogados e autoridades em geral. As pessoas percebem, ainda que intuitivamente, que a lei e as decisões judiciais não veiculam os anseios profundos da ordem natural das coisas, sendo, na realidade, instrumentos de opressão e de agendas político-ideológicas. Há uma perda ou esquecimento do caráter sapiencial do direito, que passa a ser visto como técnica de maximização de ganhos econômicos e de imposição de programas revolucionários.

Esse esquecimento geral da função clássica e autêntica do direito e da lei se reflete na condição patológica do Estado brasileiro. Apesar de hábil e eficaz em oprimir o cidadão, as famílias e os pequenos empreendedores com as mais kafkianas exigências e imposições, o Estado, naquilo que verdadeiramente interessa à sociedade, age lentamente, de maneira paquidérmica e de forma ineficaz. É uma máquina deprimida e sem energia, incapaz de satisfazer os genuínos anseios da população por paz, justiça e abundância, bem como inerme diante da ação abusiva dos poderes metacapitalistas, das quadrilhas e organizações criminosas e dos grupos revolucionários. É um Estado que inverte a máxima política dos antigos romanos: ao invés de submeter os soberbos e auxiliar os fracos e humildes, oprime esses últimos e torna-se sócio dos poderosos.

Se o direito e a lei não estão aí para promover o bem comum da sociedade, vão acabar atendendo a interesses individuais.

Não há surpresa em que as coisas se encontrem assim. Se o direito e a lei não estão aí para promover o bem comum da sociedade, vão acabar atendendo a interesses individuais ou, mais provavelmente, a interesses de grupos ideológicos. O Estado deixa de ter um norte claro de ação, que é o de fazer as pessoas boas por meio da pedagogia da lei, dando a cada um o que é seu de acordo com a justiça natural, e passa a ser o butim de diversas forças políticas e econômicas, cada qual com sua agenda. O Estado se transforma numa espécie de monstro de várias cabeças, todas em luta constante umas com as outras, cada qual representando um interesse. É a captura do Poder Público por motivações outras que não a da promoção da vida em sociedade racionalmente ordenada para o bem comum.

Na tradição clássica o direito não serve aos propósitos contingentes e peculiares do governante instalado, muito menos aos de juízes, advogados e tribunais. De acordo com a filosofia dos juristas da antiga Roma, o direito é a arte do bom e do justo, e não a dos preconceitos da moda, das ideologias de massa ou do espírito da revolução. A lei, por seu turno, nessa concepção clássica, é a decisão emanada de varões prudentes, ou, na fórmula mais analítica de S. Tomás de Aquino, o ditame da razão para o bem comum.

Um Novo Estado Brasileiro, que seja o resultado de um profundo esforço espiritual, intelectual, cultural e moral de restauração de nossas tradições e raízes políticas e sociais passa necessariamente pela recuperação da tradição jurídica e pela reincorporação, em nossas práticas institucionais, desse legado sapiencial do ius commune.

Recuperar essa tradição, portanto, é recuperar, em primeiro lugar, aquilo que nos pertence: é o nosso direito, é a nossa história, é o nosso modo de viver. É parte das sementes do velho Brasil que devem ser novamente semeadas. E, em segundo lugar, é o meio necessário para que possamos combater eficazmente a politização do direito e o ativismo judicial tão presente em nossos dias.

Fernando Ferreira Jr. é advogado e mestre em Direito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ).

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