| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Bento XVI fez um único grande ato midiático em sua vida: renunciou ao exercício do papado, encerrado em 28 de fevereiro de 2013. Pouco para um pontífice ensanduichado entre os carismáticos papas João Paulo II e Francisco. Contudo, bastou esse gesto para torná-lo um renovador do papado e mudar o modo como o mundo o compreendia.

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Joseph Ratzinger, por ter sido prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, foi visto como um intelectual prepotente, que desejava impor a todos suas verdades particulares. Mas essa visão era totalmente equivocada, que não correspondia a seu modo de ser.

Os papas têm brasões pessoais, nos quais buscam mostrar, com elementos simbólicos, sua proposta e a visão que têm de si mesmos. Dois animais presentes no brasão de Bento XVI indicam sua verdadeira personalidade: um urso arreado e uma concha de vieira.

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O urso arreado refere-se a uma antiga tradição bávara, segundo a qual o bispo São Corbiniano ia para Roma quando teve seu cavalo trucidado por um urso. O santo ordenou à fera que, arreado como montaria, o levasse pelo resto da viagem. O brilhante Ratzinger, que se movia nos círculos acadêmicos tal qual um urso em sua floresta, vinha a Roma como um serviçal, um animal de carga à disposição da Igreja.

A Igreja é uma instituição religiosa, que se legitima por seu caráter místico, de relação com o transcendente

A vieira lembra Santo Agostinho, que teria encontrado um menino tentando encher um buraco na praia com água do mar. Quando o santo lhe explicou que nunca conseguiria fazer isso, pois a água sempre se infiltraria na areia, o menino lhe respondeu que também a inteligência humana nunca conseguiria entender o mistério infinito de Deus.

Urso e concha mostram, simbolicamente, a postura de obediência e humildade com a qual o teólogo alemão se acercou de suas funções em Roma, como cardeal e como papa. O contexto fez com que essa postura só se evidenciasse com sua renúncia.

Estamos habituados a ver os poderosos fazerem de tudo para esconder suas fraquezas e se perpetuar no poder. A renúncia de Bento XVI mostrou uma lógica de desapego e serviço oposta à do mundo, testemunhou um outro modo de conceber o poder e abriu caminho para um papa que desde logo proclamou querer uma “Igreja pobre para os pobres”.

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Leia também: O legado de Ratzinger (artigo de Tracey Rowland, publicado em 15 de abril de 2017)

Leia também: A marca de um papa (artigo de Carlos Alberto Di Franco, publicado em 18 de fevereiro de 2013)

Mas o papel histórico de Bento XVI transcende em muito essas considerações. Ele só pode ser adequadamente compreendido numa análise do período que vai do fim do Concílio Vaticano II até, pelo menos, o pontificado do papa Francisco. Trata-se de uma análise provisória, pois ainda estamos dentro desse período e a história só se torna adequadamente compreensível com o passar do tempo.

As paixões partidárias nos levam a ver os pontificados atuais como uma alternância de poder entre progressistas e conservadores, uns defendendo e outros combatendo reformas na Igreja. O cenário real é mais complexo e menos polarizado. Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e Francisco – como seus antecessores – compartilham uma visão do cristianismo, a despeito das particularidades de cada um.

Todos eles concordam que o cerne da Igreja é a relação com Cristo. Ela é uma instituição religiosa, que se legitima por seu caráter místico, de relação com o transcendente. Pode parecer óbvio, até para um observador ateu, mas não foram poucos os que, no período pós-conciliar, imaginaram que, diante da secularização, a Igreja se legitimaria por seu papel de agente indutor da transformação social e não por seu caráter místico.

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Além disso, valorizam a continuidade da doutrina católica. O Concílio não traz, segundo eles, uma ruptura com o “velho” catolicismo, e sim um aprofundamento da experiência cristã, purificada dos aspectos circunstanciais determinados pela história e fortalecida a partir das raízes.

Bento XVI é como uma argamassa que une os tijolos

No plano sociopolítico, esses pontífices compartilham tanto a visão “progressista”, defendendo a transformação das estruturas injustas da sociedade, quanto a visão “conservadora”, para a qual as mudanças estruturais não bastam sem a preservação de valores morais sólidos e coerentes. Em conformidade com a Doutrina Social da Igreja, denunciam os aspectos injustos do capitalismo e defendem a democracia e as liberdades individuais (inclusive João Paulo II e Francisco, considerados o mais “à direita” e o mais “à esquerda” entre eles).

Nas questões morais e sexuais, as posições de alguns deles parecem muito diferentes das dos demais. Mas isso acontece porque as leituras dos documentos e pronunciamentos feitas pelos seus intérpretes são frequentemente fragmentadas (cada um selecionando o que mais lhe convém) ou supõem concessões políticas (os papas não falariam o que pensam, mas sim o que precisam dizer para agradar aos outros setores da Igreja). Novamente, quem ler os textos inteiros, aceitando que são fiéis às ideias dos autores, verá seu consenso. O princípio unificador, entre eles, poderia ser sintetizado na fórmula “a Igreja condena o pecado (porque ele faz mal à pessoa), mas ama o pecador (e todos, sem exceção, somos pecadores)”. Não é à toa que o amor pode ser facilmente identificado como fio condutor do pensamento de todos esses papas.

Nesse contexto, Bento XVI é como uma argamassa que une os tijolos. Sua reflexão permanece em clara continuidade a João Paulo II, mas suas preocupações sociais, por exemplo, têm um claro resgate de Paulo VI (basta ler a Caritas in veritate), enquanto sua visão do amor cristão prenuncia Francisco (Deus caritas est propõe um tipo humano que se realiza claramente no pontífice atual).

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No fim de seu pontificado, Bento XVI dizia que a “barca de Pedro” se encontrava no caminho justo – e esta era sua maior preocupação. Depois dele, viria o papa que prefere uma Igreja que “tropeça no caminho” a uma que não caminha. A preocupação de Bento XVI era deixar aberto e bem sinalizado o caminho onde a Igreja até poderia tropeçar, mas não se perderia.

Francisco Borba Ribeiro Neto é coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.