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O ministro do STF Kássio Nunes Marques suspendeu um trecho da Lei da Ficha Limpa.
O ministro do STF Kássio Nunes Marques suspendeu um trecho da Lei da Ficha Limpa.| Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

A Lei Complementar 135/2010 (popularmente chamada de Lei da Ficha Limpa), embalada na onda de combate à corrupção que se consolidou no transcurso do famigerado processo do mensalão, alterou o regime de inelegibilidades instituído originariamente pela Lei Complementar 64/1990, que, de fato, deixava a desejar.

Entretanto, a pretexto de moralizar as candidaturas e trazer mais eficácia ao sistema de repressão aos ilícitos (especialmente no tocante à antecipação dos efeitos das condenações, agora operantes já a partir de um julgamento colegiado, rompendo a lógica tradicional de se aguardar o trânsito em julgado), a Lei da Ficha Limpa cometeu alguns excessos e, dentre esses, a falta de previsão da “detração” é de longe o maior dos seus problemas.

No juridiquês, a detração, prevista no artigo 42 do Código Penal, se traduz no desconto que se faz, da pena definitiva de um condenado, do tempo que o réu ficou provisoriamente preso. Num exemplo hipotético e bem simplório, no caso de um cidadão ser condenado a cinco anos de prisão e ter ficado um ano preso cautelarmente aguardando julgamento definitivo, esta fração de 365 dias é descontada daquele tempo total.

Esse cômputo da medida provisória (inelegibilidade a partir da decisão colegiada) na pena final (inelegibilidade em definitivo, a qual começa a incidir a partir do cumprimento de todas as penas fixadas na sentença penal condenatória) é defendido, no âmbito eleitoral, como forma de evitar desproporções que resultariam em inelegibilidades por 20, 30 anos ou ainda mais, a depender das nuances do caso concreto, considerando o tempo transcorrido entre o julgamento colegiado nas instâncias ordinárias até a análise de todos os recursos pelo sistema judicial brasileiro, bem ainda até o cumprimento em definitivo da pena.

A assim denominada “detração eleitoral” tem, portanto, o condão de atingir pelo menos dois objetivos cruciais a um sistema jurídico liberal: 1. objetividade, isto é, definir um prazo certo de cumprimento da pena de inelegibilidade, de modo a garantir 2. proporcionalidade na aplicação da lei, evitando situações específicas de inelegibilidades que podem extrapolar 30 anos.

Para além disso, assim como o nosso sistema penal erigiu um prazo máximo de cumprimento de pena de prisão, qual seja, o de 30 anos, por força da previsão contida no artigo 75 do Código Penal, o nosso sistema eleitoral deveria seguir a mesma regra e fixar um prazo máximo de inelegibilidade em hipóteses como as decorrentes de ações penais ou de improbidade, onde o prazo comum de oito anos pode chegar a mais de 30.

Do ponto de vista constitucional, se o fundamento da limitação da pena em 30 anos é a impossibilidade de se ter, no Brasil, penas de caráter perpétuo (segundo o artigo 5.º, XLVII, b), no âmbito eleitoral o fundamento é duplo: a exigência de que a inelegibilidade tenha um prazo certo (artigo 14, §9.º, da Constituição) e a impossibilidade de cassação dos direitos políticos no nosso ordenamento (artigo 15 da Constituição). Como a Lei da Ficha Limpa, ao alterar substancialmente o regime original de inelegibilidades, não previu um limite máximo para o seu cumprimento, há a necessidade de se aplicar, por analogia e em sede judicial, o instituto da detração, próprio do Direito Penal, até que o Congresso Nacional faça o seu papel e se debruce sobre essa lei para corrigir suas deformidades e suprir suas omissões.

É justamente por isso que os olhos dos players eleitorais estão voltados para o Supremo Tribunal Federal – e mais especialmente ao relator, ministro Kássio Nunes Marques, o qual já adiantou sua posição favorável à tese ao despachar às vésperas do plantão, tendo despertado a ira do MCCE e agregados ao implementar liminar viabilizando a detração –, que em breve julgará a corajosa ação (ADI 6630) ajuizada pelo PDT, sob o patrocínio dos combativos advogados Ezikelly Barros, Alonso Freire e Bruno Rangel, os quais colocaram verdadeiramente o dedo na ferida. Afinal de contas, o que diferencia o remédio do veneno é a dosagem e, uma vez mais, o paciente “democracia” está nas mãos de seu guardião.

Rodrigo Cyrineu, advogado, escritor, professor e Mestre em Direito Constitucional, é membro-fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político e membro da Comissão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

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