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 | Tomaz Silva/Agência Brasil
| Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Se em 2016 eu já alertava para o fenômeno brasileiro do que chamei de “amnésia histórica” (esquecimento do passado propositalmente para permitir sua substituição por confusões, mentiras e visões ideológicas), agora, depois do incêndio do Museu Nacional, corremos o risco de agravar a doença. Esforcei-me por combater seus sintomas pessoalmente com as produções da série Brasil – A Última Cruzada e do filme Bonifácio – O Fundador do Brasil, sempre dizendo que tratava-se só de um começo. Para abalar meu otimismo, veio o incêndio.

Só não falo em lobotomia, como o fez Marina Silva, porque a maior parte do acervo histórico do Brasil não estava lá, o que não atenua tanto a dor porque o prédio mesmo do Museu era um dos nossos mais pujantes documentos. E, como eu já disse, entendo que a deficiência mnemônica brasileira já existe faz tempo.

Entretanto, temos também uma oportunidade: aprender as lições da tragédia. Isso começa por identificar os responsáveis diretos, para que respondam pelo que lhes cabe, e por aumentar a vigilância sobre aqueles que ocuparem seus lugares. Não coloco a culpa no desinteresse do povo, como muitos estão fazendo. Culpados são aqueles que a justiça apontar como tais, individualmente. O povo pode (e deve) prestar mais atenção.

O exercício de recordar o passado comum do povo do qual fazemos parte, além de fazer bem à saúde mental e de reforçar a consciência nacional, leva, naturalmente, a um maior cuidado com as fontes que nos informam sobre esse passado. Temos muito o que aprender sobre esse ponto.

O exercício de recordar o passado comum do povo do qual fazemos parte faz bem à saúde mental e reforça a consciência nacional

A última vez que estive no Rio de Janeiro foi em março do ano passado. Cheguei cedo, pela manhã, quase sem dormir, doente e com a missão de dar uma palestra à noite.

O Uber demorou porque parou para ver uma briga; um taxista negou-se a me levar aonde eu queria – disse que era muito perigoso; o motorista do ônibus parecia pretender decolar voo; o outro taxista me mandou ligar “a mulher do celular” – disse que não lembrava o caminho porque sua memória estava prejudicada, dando a entender que consumia certas ervas danosas ao cérebro.

Nada disso me intimidou: peguei todo meio de locomoção possível para poder dar uma passada em cada praça histórica, em cada Museu e na Biblioteca Nacional.

Não tive, infelizmente, tempo de parar em cada monumento. Belíssimos prédios, aliás. Fiquei maravilhado com aquilo. Mas precisava comer e ainda descansar um pouco, para não comprometer minha capacidade de conduzir o evento à noite. Só na Biblioteca foi diferente. Passei algumas horas lá, para ler cartas originais de José Bonifácio cujos códigos eu havia anotado.

O rapaz e a moça que me atenderam foram solícitos, mas pareciam cabisbaixos, depressivos, desanimados. Ela chegou a me perguntar por que eu estava lá se do Bonifácio estava tudo digitalizado. Eu lhe respondi que o que pedia não estava digitalizado. Ela fez cara de descrente e foi pegá-las. Ao voltar, disse-me: é mesmo, essas aqui ninguém digitalizou. Lancei apenas a minha cara de “não falei”, vesti as luvas e fui lê-las.

Opinião da Gazeta: O retrato do descaso (editorial de 3 de setembro de 2018)

Leia também: Com o Bendegó na janela (artigo de Tom Grando, publicado em 4 de setembro de 2018)

O momento cultural do qual participaria tratava-se de uma palestra conjunta, entre mim, Sérgio Pachá, Sidney Silveira e Alexandre Borges, para divulgar o terceiro teaser do filme Bonifácio – O Fundador do Brasil, a convite de seu diretor, Mauro Ventura. O local estava lotado.

Concluí, ao final do dia, que – exceto as pessoas envolvidas com o filme, aquelas que por ele se interessaram e uns quantos estudiosos de história e apaixonados pelo Brasil – tudo de grande que representa o Rio de Janeiro, e por conseguinte, o Brasil Imperial, está impresso nas pedras. Virou um bordão meu: a grandeza do velho Brasil está nas pedras. No último 2 de setembro, o maior exemplar de pedra que nos serve de portal ao nosso passado, tanto pela sua qualidade arquitetônica quanto pelos eventos que aquelas paredes testemunharam, foi quase inteiramente posto abaixo.

A amnésia histórica leva indiretamente à destruição de nossos bens culturais. Em Santos, onde nasci e moro, dois museus importantíssimos foram roubados. O Museu do Trem Bélico ficou sem suas armas antigas, porque o que sobrou, o dono da coleção preferiu retirar de lá; O Museu de Arte Sacra teve centenas de obras barrocas raríssimas levadas embora. Como fomos educados a odiar nossos antepassados, fechamos os olhos para os documentos que nos trazem dados verdadeiros sobre eles.

Explicada essa parte mais genérica do problema, vamos ao específico: o que mais diretamente destrói o nosso patrimônio histórico? O descaso dos dirigentes e responsáveis pelos museus, monumentos, acervos, prédios tombados etc. É esperado que pelo menos eles protejam para nós esses bens, já que ganham para isso.

Flavio Gordon: Museu Nacional: In Memoriam (publicado em 5 de setembro de 2018)

Leia também: Mais uma ferida na vulnerável ciência brasileira (artigo de Marta Luciane Fischer, publicado em 5 de setembro de 2018)

Vejamos exemplos de descaso:

1. O Museu Nacional foi o sétimo prédio da UFRJ incendiado.

2. Pautas do PCdoB e do PSol apareceram nas redes e nas ruas, mas em momento algum houve mobilização pela preservação e pela segurança do museu, afinal, o dinheiro recebido pelo reitor (fundador e filiado ao PSol) era dirigido a outros setores da Universidade. Agora, pedem mais recursos justamente para as mãos dos causadores do problema. Mobilização por verba; o patrimônio histórico é a desculpa.

3. Os funcionários do museu atendiam todos os interessados em história com muito mau gosto, respondendo a quem lhes perguntava sobre os aposentos de D. João VI ou de D. Pedro II com palavras ríspidas, enfatizando tratar-se de Museu de Ciências Naturais, não de História.

4. No dia 27 julho, o Ministério Público Federal foi comunicado de problemas no museu. Em 31 de agosto, o MPF, depois de recolhidas provas e de ter adiado prazos a pedido da reitoria da Universidade, anunciou a instauração de procedimento preparatório, medida que prepara o caminho para uma ação. Não deu tempo de averiguar. Dois dias depois, no 2 setembro, veio o incêndio.

É muito descaso. Enquanto o povo padecia de amnésia história, a destruição do patrimônio que informava sobre a nossa história ia sendo destruído. Nas redes sociais, já há até quem peça algum prédio novo no mesmo local. Na terra do Museu do Amanhã, falta lugar para o ontem.

Que esse evento sirva para trazer de volta o interesse pela história. Não há consciência nacional sem o saber histórico. Que o espírito da nacionalidade saia das pedras e queime nos corações dos brasileiros, para que nunca mais permitamos que acidentes como esse aconteçam!

Rafael Nogueira é professor de História, Filosofia, Ciência Política e Literatura, e estudioso de José Bonifácio.
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