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Por que não falar sobre a morte?
| Foto: Geoffroy Hauwen/Unsplash

Não é novidade que as pessoas, em geral, evitam falar da morte, como se o simples falar pudesse antecipá-la. Essa postura nos parece inexplicável, pois o morrer, assim como nascer, é apenas um processo pelo qual todos nós passaremos um dia. Afinal, com os notáveis avanços da Medicina, as pessoas passaram apenas a demorar mais para perecer.

Atualmente, mais do que aplicar tratamentos invasivos e sem benefícios, o que se deve buscar é aliviar a dor emocional e física do paciente em seus momentos finais, garantindo-lhe uma morte sem sofrimento e com um mínimo de dignidade. Nesse contexto, o relatório da consultoria britânica Economist Intelligence Unit revela que o Brasil obteve o grau 42,5% no “Índice de Qualidade de Morte”, ocupando a 42ª posição do ranking de 80 países, sendo um dos Estados menos preparados em termos de cuidados paliativos para doentes terminais. Para Maria Goretti Sales Maciel, médica do Hospital do Servidor Público Estadual (São Paulo), uma das pioneiras em cuidados paliativos no Brasil, e que participou como consultora durante a elaboração do relatório, o Brasil não permite um amplo acesso a terapias e medicamentos, analgésicos especialmente, concluindo que, em nosso país, “quem tem dor, morre com muita dor”.

Quando se pode falar livremente sobre a morte, temos a chance de construir a despedida, que é o que de fato importa.

Kathryn Mannix, Médica britânica e autora do livro With the End in Mind: Dying, Death, and Wisdom in an Age of Denial (“Com o Fim em Mente: Morrer, Morte e Sabedoria na Era da Negação”, em tradução livre), tornou-se pioneira em cuidados paliativos, dedicando sua carreira a tratar de pacientes com doenças incuráveis, nos últimos estágios de sua vida. Em entrevista concedida à BBC Ideas, ela explica que é comum observar que as pessoas empregam termos similares para determinadas palavras e expressões que designam o evento morte: “Deixamos de usar a palavra ‘morrer’ e passamos a usar outras similares. Em vez de “morto”, dizemos “falecido”. Em vez de dizer que alguém está morrendo, dizemos que ele está ‘muito doente’”.

Ela assevera que o emprego dessas palavras substitutivas faz com que as famílias não consigam entender que o momento da morte está se aproximando. E que “isso é um grande problema porque, quando a família está junto ao leito de alguém prestes a morrer, não sabe o que dizer entre si ou para o próprio doente, que também não sabe o que dizer ou o que esperar”. Para ela, o momento da morte não precisa ser assim. Afinal, “a morte normal é realmente um processo tranquilo — algo que podemos reconhecer, para o qual podemos nos preparar e algo com o que podemos lidar”.

Felizmente, parece que as coisas estão mudando. Em 2011, desembarcou no Rio de Janeiro uma iniciativa que surgiu a partir das ideias do Antropólogo suíço Bernard Crettaz: o Death Cafe, encontro que reúne pessoas para discutir sobre aspectos relacionados ao fim da vida. Originariamente, tal evento foi desenvolvido pelo britânico budista Jon Underwood, que se inspirou em Crettaz para elaborar um modelo similar.

A ideia do Death Cafe é justamente não ter roteiro definido, tendo as seguintes premissas básicas: ausência de fins lucrativos; não ter proposta terapêutica ou de grupo de apoio; não ter funcionários, apenas voluntários; ter hora marcada para começar e para terminar. Em um desses encontros, um casal narrou sua dolorosa experiência de perder uma filha, então com 21 anos, em um acidente de trânsito em Teresópolis, Região Serrana do Rio de Janeiro, fato ocorrido em 2016. Eles relataram que tiveram que reaprender a viver depois da tragédia, pois nunca haviam pensado na morte, muito menos na de um filho. Muito provavelmente porque jamais pensaram que a filha pudesse morrer antes deles. A verdade é que essa “ordem natural”, segundo a qual os pais morrem antes dos filhos, é pura criação humana. Existe uma necessidade natural do ser humano de organizar a vida, de “fatiar o tempo”. No entanto, a realidade é que a “ordem natural das coisas” só existe em nossas cabeças, considerando a aleatoriedade da vida e dos acontecimentos.

Embora as pessoas em geral prefiram pensar só na vida, a verdade é que refletir sobre a morte não significa contradizer a vida. Muito menos revela alguma espécie de desprezo pela vida. Pelo contrário, falar da morte de maneira natural e serena, desmistificando-a, é viver. Falar sobre a morte nos faz ter consciência sobre nosso tempo e viver uma vida que leve a um final mais leve, sem arrependimentos. Temos que ter em mente que a vida é imprevisível e a morte faz parte dela. Quando se pode falar livremente sobre a morte, temos a chance de construir a despedida, que é o que de fato importa.

Reis Friede, mestre e doutor em Direito e desembargador federal, foi presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), e é professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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