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A implicância com fortunas é um traço de nossa rançosa tradição de considerar o lucro como usura e os que são bem-sucedidos como meliantes, espertalhões

Conversava com João Casillo, que lançou um belíssimo livro com a coletânea de sua coleção de arte com a temática do Direito, sobre o desapego que nós brasileiros demonstramos em relação às escolas em que nos formamos e ele me contou um episódio inacreditável. Ex-alunos ilustres e ricos da lendária, mas fisicamente decrépita, Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, decidiram doar os recursos necessários para restaurar inteiramente as instalações, modernizar os serviços etc. Dois milhões de reais foram imediatamente arrecadados e vários estavam a caminho não fosse um fato: como a direção da faculdade deu o nome escolhido pelos benfeitores às salas e colocou placas de agradecimento do gesto, alunos e professores se uniram para repudiar as doações, alegando que "os ritos não foram cumpridos" e que a prática era condenável pois quebrava a tradição de dar às salas nomes de professores ilustres. Alunos mais exaltados arrancaram uma placa e cobriram outra com uma faixa de luto.

Enquanto isso, mais de US$ 3 bilhões foram doados em 2010 por milionários americanos para as universidades que frequentaram e para outras instituições como hospitais universitários, centros de pesquisa etc. Isso para não falar nas megadoações de Bill Gates e de Warren Buffett, que deram quase que a totalidade de suas fortunas bilionárias e que organizaram uma lista, o Giving Pledge, em que outros milionários se comprometem a fazer a mesma coisa. Mais de 40 já aderiram e estima-se que só os rendimentos dessas doações garantirão US$ 600 milhões a cada ano. Esse capitalismo selvagem é diabólico, não é mesmo? Acredito que a reação dos alunos e de alguns professores da USP seja motivada por um misto de bacharelismo, caipirismo e implicância com fortunas. O bacharelismo se manifesta na preocupação com os "os ritos", como se ritos fossem imutáveis e sagrados. Nada é sagrado quando se trata das coisas dos humanos e sou muito mais propenso a admirar o pragmatismo do rei Henrique IV, da França, que era protestante e se converteu ao catolicismo para poder aplacar a hostilidade da Igreja e ascender ao trono francês. Seria dele a frase-símbolo da praticidade: "Paris bem vale uma missa!" Em vez de vociferar contra a quebra dos ritos, alunos e professores inconformados teriam dado maior prova de amor à sua veneranda faculdade do Largo de São Francisco se tivessem aceitado as doações, mesmo murmurado entre dentes, "As Arcadas bem valem uma placa na sala" do que arrancando as ditas em sinal de protesto. O caipirismo fica por conta dessa anacrônica distinção que se faz entre o mundo da cultura e o mundo do dinheiro. Se esse tipo de tolice prevalecesse, não teríamos a oportunidade de nos deliciar no Metropolitan Museum of Art, no Museu de Arte Moderna de Nova York, nos Guggenheim, no Getty Museum, todos "conspurcados" pelas doações de milionários como os Rockefeller, os Mellon, os Getty, os Barões Ladrões. A não ser que considerem mais adequado o método napoleônico de saquear os museus alheios para enriquecer o acervo do Louvre; ou a piedosa preocupação de Lord Elgin, que fez arrancar todos os mármores do Parthenon para evitar que os gregos os vendessem a mercadores e os transferiu para o British Museum, onde são orgulhosamente expostos sob o nome de Elgin Marbles.

A implicância com fortunas é um traço de nossa rançosa tradição de considerar o lucro como usura e os que são bem-sucedidos como meliantes, espertalhões que enriqueceram a custa da credulidade alheia. É claro que os há, como também há os que promoveram a cultura para enriquecer posando de mecenas, mas até esses acabam contribuindo para enriquecer o acervo cultural do país, como prova a saga de Assis Chateaubriand.

Na University of Southern California, minha alma mater, a principal biblioteca, que tem 16 milhões de livros, chama-se Doheny Memorial Library. Quem era o Doheny, um grande pesquisador ou filósofo? Não, era um ex-aluno que doou o dinheiro para construí-la. Paris bem vale uma missa.

Belmiro Valverde Jobim Castor é Ph.D. em Administração Pública e professor do Doutorado em Administração da PUCPR.

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