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É possível manter alguém preso preventivamente por meses sem lhe garantir o direito de conhecer os motivos de fato e de direito que ensejaram a sua prisão? Infelizmente, recentes decisões do Supremo Tribunal Federal e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos demonstram que sim.
Em determinado caso concreto (Rcl 63.534/AL), o objeto da investigação eram dois crimes de homicídio qualificado (um consumado e outro tentado). Durante a fase investigativa, a autoridade policial solicitara ao magistrado responsável pelo caso a prisão preventiva do investigado, além de outras providências (busca e apreensão, prisão preventiva de outros investigados etc.).
Posteriormente, o Ministério Público ofereceu denúncia e requereu a decretação da prisão preventiva e de outras medidas cautelares, sobrevindo decisão judicial que recebeu a denúncia e deferiu todas as medidas pleiteadas. Efetuada a captura do investigado, a decisão que decretara a sua prisão cautelar permanecia em segredo de justiça, completamente inacessível à parte e ao seu defensor.
Ora, o direito de acessar a decisão que decretou a prisão está implícito na garantia constitucional do habeas corpus (art. 5º, LXVIII, da Constituição Federal), pois não é possível contestar uma prisão cautelar sem conhecê-la. A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José), por sua vez, estabelece de forma explícita o direito do preso de ser informado das razões de sua detenção (art. 7.4) e de utilizar um recurso simples e rápido que o proteja contra violações de direitos fundamentais (art. 25.1).
Nesse contexto, a Defensoria Pública solicitou o acesso à decisão que havia decretado a prisão preventiva, mas o magistrado indeferiu o pedido, apontando a existência de diligências em andamento que haviam sido determinadas na mesma decisão que decretara a custódia cautelar; desse modo, o sigilo seria necessário para garantir a execução de tais medidas.
Diante desse cenário, e tendo em vista o flagrante desrespeito ao teor da Súmula Vinculante n. 14/STF, a Defensoria apresentou reclamação constitucional (Rcl 63.534/AL) ao Supremo Tribunal Federal, que foi julgada improcedente por decisão monocrática do Ministro Gilmar Mendes, relator do caso. O agravo regimental interposto foi igualmente desprovido pela Segunda Turma da Suprema Corte.
Esgotados os recursos de direito interno, a Defensoria apresentou uma petição de denúncia de violação de direitos humanos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (P-1326-24) e, separadamente, um pedido de medida cautelar (MC-626-24), justificando este na gravidade e urgência da situação. No entanto, a Comissão indeferiu o pedido por entender ausentes os requisitos necessários.
O primeiro ponto a ser destacado é que o caso não envolve o acesso da defesa a informações referentes a diligências não efetivadas (ou em andamento), mas apenas à decisão que havia decretado a prisão preventiva do assistido.
Após o cumprimento do mandado de prisão, não se pode negar ao preso o direito de conhecer as razões de sua custódia cautelar com base no equivocado argumento de que existem diligências sigilosas em andamento. Isso significaria fazer letra morta da garantia constitucional do habeas corpus.
Se havia diligências pendentes, bastava deferir o acesso parcial à decisão, resguardando os trechos sigilosos concernentes às diligências pendentes. A negativa absoluta de acesso à decisão torna a prisão arbitrária, pois impede sua impugnação de forma adequada e tempestiva.
Aliás, a controvérsia em torno dessa questão levou o Supremo Tribunal Federal a editar (em 2009) a Súmula Vinculante 14/STF, segundo a qual: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
Se é direito do defensor ter acesso às provas já documentadas que digam respeito ao seu cliente, com muito mais razão é seu direito ter ciência dos motivos da prisão preventiva
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em casos como Espinoza González vs. Peru e Neptune vs. Haiti, reforça que a ausência de informação sobre os fundamentos da prisão (ou a simples demora na prestação de informação) torna o controle judicial ilusório, comprometendo a efetividade das garantias processuais. Com efeito, como se defender, como questionar uma decisão sem ter acesso aos seus fundamentos?
Compreende-se a necessidade do sigilo em relação a diligências cautelares em andamento (decretadas na mesma decisão que determinou a prisão preventiva do beneficiário): o exemplo óbvio é o da interceptação telefônica em andamento, que evidentemente deve ser mantida em sigilo em relação ao investigado enquanto perdurar a diligência (art. 8º da Lei n. 9.296/1996).
Porém, isso não pode justificar – à luz da legislação interna e dos citados dispositivos da Convenção Americana – a negativa de acesso aos fundamentos da prisão, por mais graves que sejam as acusações.
Para resguardar o sigilo das diligências em andamento (cujo segredo é juridicamente justificado), bastava – como já se afirmou acima – conceder à parte acesso parcial à decisão, limitada aos trechos que lhe diziam respeito, conforme, aliás, a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal consolidada na Súmula Vinculante n. 14/STF.
Nota-se, assim, flagrante divergência entre os precedentes citados e a posição atual do Supremo e da Comissão IDH no caso analisado, revelando uma inflexão preocupante na proteção dos direitos fundamentais.
Trata-se de uma das mais evidentes violações a um direito natural e fundamental do preso: o de conhecer os motivos de sua prisão. A realidade supera a ficção kafkiana, na medida em que se impõe ao cidadão o peso da prisão cautelar sem lhe conceder acesso ao ato judicial que a fundamenta. Diante disso, impõe-se a indagação: ainda podemos afirmar que vivemos sob o império do Estado de Direito?
João Fiorillo de Souza, graduado em Direito, pós-graduado em Ciências Penais, mestre em Direito Público, é defensor público do estado de Alagoas e autor do livro “A iniciativa instrutória do juiz no processo penal" (ed. Juruá, 2012).



