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Pessoas prestam homenagem aos mortos em um tiroteio em El Paso, Texas, em 4 de agosto
Pessoas prestam homenagem aos mortos em um tiroteio em El Paso, Texas, em 4 de agosto| Foto: Mark Ralston/AFP

O senhor sentado ao meu lado no banco de metal, muito distinto em uma camisa cor de pêssego, calça escura e sapatos sociais, me toca gentilmente no cotovelo.

É fim de tarde de sábado e estamos em frente à MacArthur Middle School, onde as bandeiras já se veem caídas, a meio mastro, no calor de quase 37°C do deserto. Policiais, bombeiros e o pessoal da Cruz Vermelha vêm e vão. É nessa pequena escola que os vivos vêm procurar pelos desaparecidos e mortos depois que Patrick Crusius, um branco de 21 anos, saiu de um subúrbio de Dallas para vir à minha cidade natal cometer o maior massacre de hispânicos na história norte-americana. O aviso escrito a mão na porta da escola diz tudo: "Para quem procura familiares e amigos".

Por trás dos óculos, há lágrimas nos olhos do meu companheiro de banco, Charles Almanzar, 70 anos. Sem falar nada, ele me mostra seu celular, onde há uma foto de duas crianças pequenas, uma garotinha de 5 anos e um garoto de 2. Ela estava no ensaio da escolinha, mas ele está no hospital; o irmãozinho mais novo deles, de apenas 2 meses, continua desaparecido, motivo da busca frenética do cunhado de Almanzar. A mãe dos pequenos, Jordan Kay Jamrowski Anchondo, de apenas 25 anos, e o marido, Andre, 23 anos, foram mortos por Crusius, com mais pelo menos outras 18 pessoas em um Walmart não muito longe do centro.

Se vocês querem saber o que acontece quando ocorre uma chacina em sua cidade, é mais ou menos assim: o celular não para, com um sem-fim de mensagens de alerta; uma mulher desesperada no noticiário local implora ao público que leve água para as famílias que estão à espera de notícias; 200 pessoas se põem em fila para doar sangue em um calor senegalês; vários helicópteros ficam sobrevoando a área da tragédia; os mortos continuam ainda na cena do crime, descrita como "horrenda" pelo chefe da polícia. Os que esperam tentam manter uma postura calma e digna, enquanto estranhos chegam com caminhonetes lotadas de água mineral. E é também uma punhalada no peito não da cidade, mas do povo – no meu caso, o latino. Crusius veio especificamente até aqui para matar minha gente.

Os latinos não invadimos nada; já estávamos aqui muito antes mesmo de o atirador de El Paso ser concebido

"Meu Deus, meu Deus, meu Deus", não para de repetir minha irmã caçula, Janet, também filha de pai norte-americano e mãe mexicana.

Li o manifesto que se acredita ter sido escrito por Crusius – embora ainda não confirmado pelas autoridades –, que viajou quase 970 quilômetros para matar e ferir homens, mulheres, idosos e crianças. Vídeos de celular postados pelas vítimas na internet revelam a terrível sequência que resultou em sua morte: dez tiros de fuzil AK-47, não em rápida sucessão, mas em um ritmo estudado. Primeiro um disparo; depois uma longa pausa. E então, um atrás do outro; a seguir, um grito em espanhol: "Ay, no!"

"Este ataque é uma resposta à invasão hispânica do Texas", diz o documento, antes de descrever, de forma fria e assustadora, as preferências do assassino em relação a armas e munições, política, economia e filosofia racista. Sua ideia é devastadoramente simples: matar hispânicos para fazer com que os imigrantes parem de chegar, forçando os cidadãos a ir embora. "Estou simplesmente defendendo meu país da reparação étnica e cultural resultante da invasão."

É claro que os latinos chegaram ao Texas, saídos do México, em 1690, quando tudo ainda era Nova Espanha. Meu povo se estabeleceu no sertão árido do sul do Texas, lutou contra comanches e apaches e trouxe o cristianismo para o país. O tio da minha mãe, cidadão mexicano, lutou na Segunda Guerra Mundial pela Marinha dos Estados Unidos e não voltou. Meu avô mexicano veio para o Texas como órfão, viveu em Laredo e retornou para a terra natal. Meu pai, soldado nascido no Arkansas, conheceu minha mãe em Monterrey e com ela se estabeleceu aqui nos desertos de West Texas em 1970. Não invadimos nada; já estávamos aqui muito antes mesmo de Crusius ser concebido.

Mas ele não passa de mais uma figura efêmera neste momento moderno de violência doméstica que atravessamos, combinação da fraqueza previsível dos políticos republicanos em relação ao lobby armamentista e a imensa variedade e disponibilidade de armamento pesado. Outro dia fui a uma loja de artigos esportivos para comprar uma vara de pesca, mas não deixei de notar o vasto suprimento de fuzis AR-15, "primo" mais próximo de nossa arma de guerra favorita, o M-16.

Mais significativo, entretanto, é o fato de que o massacre de El Paso – sim, porque não foi um tiroteio em massa, mas uma chacina premeditada – foi consequência inevitável da ofensiva anti-imigração e antilatina da era Trump, que não passa de um racismo vil e generalizado que envenena a nação.

El Paso-Juarez é uma cidade grande e dinâmica de mais de 2 milhões de habitantes que une os EUA e o México. É um lugar que praticamente não sabe o que é conflito étnico, pois 80% só da população de El Paso é hispânica. Falamos inglês e espanhol com a mesma facilidade e estamos bem assim – mas o governo Trump não está. Seu mandato nos deu muros, campos de concentração e crianças em jaulas. O massacre é resultado do que eu temia já havia alguns anos, e não posso deixar de pensar que sua origem vem do presidente dos EUA.

Deus não tem nada a ver com isso. Nós é que temos, ao permitir essas armas de guerra na rua

Para pôr tudo isso em perspectiva, houve outras chacinas de latinos na história norte-americana, a pior sendo a de Porvenir, há 101 anos, uma vilazinha fronteiriça que já não existe mais, onde um grupo de patrulheiros chegou nas primeiras horas de 28 de janeiro de 1918 para sumariamente executar 15 homens e meninos hispânicos. Os habitantes que restaram fizeram exatamente o que o atirador de sábado queria: fugiram para Chihuahua.

De volta à MacArthur Middle School, Almanzar guarda o celular. Testemunha de Jeová, ele estava batendo de porta em porta quando o horror começou. Muitos lhe perguntaram por que Deus permitia que uma coisa dessas acontecesse e gentilmente ele me respondeu mostrando o trecho de Jó 34,10, que diz: "Longe de Deus esteja o praticar a maldade".

Ambos concordamos, trocando o inglês pelo espanhol, que Deus não tem nada a ver com isso. Nós é que temos, ao permitir essas armas de guerra na rua; ao dar credibilidade a racistas sociopatas, dos quais apenas um foi preso; ao envenenar nossa política com o ocupante da Casa Branca. No horizonte, nuvens negras ganham corpo sobre as mesas desérticas para chorar sobre a cidade – e ainda assim as pessoas continuam chegando, afoitas, trazendo água para quem está aqui procurando os entes queridos entre os mortos.

Richard Parker é autor de Lone Star Nation: how Texas will transform America.

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