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Série Severance traz à tona a polêmica dos neurodispositivos

Adam Scott em Severance: série amplia o debate sobre neurodireitos e autonomia. (Foto: Reprodução/Apple TV+)

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O ser humano está cada vez mais apegado e dependente da tecnologia que o cerca em todos os aspectos da vida cotidiana. Esse fenômeno tem sido percebido há muito tempo, gerando reflexões interessantes e cada vez mais pertinentes sobre a relação do homem com os artefatos por ele produzidos.

No século XX, Heidegger discorreu sobre como a tecnologia molda o ser humano, exercendo sobre ele profunda influência em sua forma de ver o mundo e de se relacionar com a realidade. Hans Jonas, por sua vez, criticou a crescente indiferença do homem em relação à natureza e a outros seres viventes, em prol do progresso tecnológico.

Mais recentemente, Michel Puech, filósofo francês contemporâneo, cunhou o termo technosapiens para designar o homem pós-moderno, ao considerar que o ser humano passou a protagonizar uma nova forma de processo evolutivo, que envolve a natureza, a humanidade e a tecnologia.

É interessante observar que, além de atração, a tecnologia desperta também o medo frente aos riscos envolvidos, o que inquieta o homem a ponto de esse sentimento ser transportado para memoráveis obras literárias e cinematográficas, que conseguiram primorosamente traduzir esse mal-estar: Frankenstein, de Mary Shelley (1818), Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932), e Eu, Robô, de Isaac Asimov (1950).

A primeira aborda os limites da ciência e da ambição humana, questionando o direito de manipular corpos e o poder de intervir arbitrariamente sobre a vida e a morte. A segunda, apesar de distópica, traz preocupações éticas sobre o controle social exercido pela tecnologia e a manipulação genética. Por fim, Eu, Robô explora dilemas éticos relacionados à autonomia das máquinas e à responsabilidade humana por suas ações.

Mais recentemente, a série Severance (Ruptura, no Brasil), exibida pela Apple TV+ (2022), tem exercido grande fascínio ao expor os possíveis efeitos de uma neurotecnologia chamada BCI – Brain Computer Interface – ou Interface Cérebro-Computador, quando implantada com o objetivo de controle da mente.

Severance é ambientada em um tempo incerto e a trama gira em torno de funcionários da empresa Lumon, que se submetem voluntariamente a uma cirurgia para a implantação de um dispositivo do tipo BCI que passa a manipular suas memórias, separando aquelas da vida pessoal das profissionais. Assim que entram em um elevador específico, na sede da empresa, ocorre a disrupção e, ao saírem, já não se lembram do que vivenciaram nos minutos anteriores.

Para além das análises comumente feitas em relação à obra e ligadas à desumanização do trabalho, merece destaque a controvérsia em torno dos efeitos do implante neural e das questões éticas que envolvem a autonomia e o vício de consentimento dos usuários.

Logo nos primeiros episódios de Severance, a narrativa induz o telespectador a acreditar que os personagens que trabalham no setor de “refinamento de macrodados” da Lumon Industries optaram voluntariamente pela ruptura das memórias.

Aparentemente, por enfrentarem sérios problemas em suas vidas pessoais – fora da empresa – esse sofrimento causado por eventos passados os levou a optar por esse obliteramento parcial durante o tempo em que passam trabalhando.

Com o desenrolar da trama, os questionamentos realizados pelos próprios personagens levantam no espectador a dúvida sobre a possibilidade de ter existido vício de consentimento na decisão pelo implante do neurodispositivo.

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Eventualmente, o vício poderia decorrer de vulnerabilidade, manipulação, erro, omissão ou distorção de informações essenciais para a tomada de decisão

A violação da autonomia também pode ser conjecturada, diante da falta de esclarecimento sobre a finalidade do trabalho que realizam e sobre como rescindir o suposto contrato.

O trabalho realizado no setor de “refinamento de macrodados” se assemelha a um jogo de computador, sem aparente lógica ou propósito prático. As tomadas aéreas, que capturam a cena de cima, despertam a sensação de que os personagens estão em um ambiente totalmente controlado e vigiado, como ratos em um laboratório. Seriam eles objeto de um experimento?

Outra inquietação surge ao se imaginar as possibilidades de intervenção da empresa que implantou o dispositivo e possui seu controle. Estaria ela atuando além daquilo que foi ajustado entre as partes, uma vez que os dispositivos permitem que seu controlador leia e altere os pensamentos, sensações e emoções de seus usuários? Talvez essa seja a preocupação central relacionada à interface cérebro-computador: a manipulação da mente.

Essa dialética entre ficção e realidade é uma estratégia interessante e muito utilizada como instrumento pedagógico para discussão de ideias novas ou complexas, especialmente quando envolvem dilemas morais, possibilitando problematizar a realidade por meio de reflexões e debates.

A série Severance, portanto, cumpre um papel educativo e fomenta discussões que se relacionam com um movimento global em favor da regulação do uso e comércio de neurodispositivos – implantáveis ou não –, especialmente aqueles considerados recreativos, sem fins terapêuticos, que já são amplamente comercializados por empresas em venda direta ao consumidor.

Um exemplo é a Emotiv, que oferece dispositivos tipo headset com leitor de ondas neurais (eletroencefalograma) com o propósito de melhorar a atenção para atividades cotidianas ou mesmo aprimorar a produtividade no trabalho, sempre mediado por um aplicativo que coleta e armazena os dados neurais de seus usuários.

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Neurodireitos: avanços internacionais e debates no Brasil

Nos últimos anos, organizações internacionais passaram a desenvolver recomendações para o uso ético e responsável das neurotecnologias. A OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – publicou, em 2019, uma recomendação para o uso responsável das neurotecnologias, e a Unesco, em 2023, divulgou o Estudo preliminar sobre os aspectos técnicos e jurídicos relacionados à conveniência de um instrumento normativo sobre a ética das neurotecnologias.

Alguns países, como a Espanha e a França, também elaboraram diretrizes para o desenvolvimento responsável dessas tecnologias, enquanto o Chile chegou a mudar a Constituição para incluir a proteção dos neurodireitos.

No Brasil, a proteção dos neurodireitos ainda não foi implementada formalmente, mas já é objeto da Proposta de Emenda Constitucional – PEC 29/2023 – e foi incorporada ao projeto de reforma do Código Civil – PL 4/2025 –, integrando o novo livro de Direito Digital. Em ambas as propostas, pretende-se proteger a integridade mental dos usuários, especialmente diante do uso de dispositivos ou aplicativos dotados de inteligência artificial.

No extenso artigo incluído no PL 4/2025, os neurodireitos foram descritos como parte indissociável da personalidade, não podendo ser renunciados ou limitados. Na mesma linha dos documentos internacionais, pretende-se corroborar o direito à liberdade cognitiva, à privacidade e à integridade mental, vedando-se a manipulação, alteração ou supressão do controle sobre o próprio comportamento sem consentimento.

O texto também detalha questões relativas à proteção da identidade pessoal, ao acesso equitativo às tecnologias de aprimoramento das capacidades cognitivas, bem como à prevenção de práticas discriminatórias.

Observa-se, portanto, o Direito procurando limitar os riscos e responsabilizar os agentes pelos possíveis danos decorrentes do uso indiscriminado das neurotecnologias já disponíveis – seja no ambiente da saúde ou no mercado de entretenimento.

Oportunamente, com Severance, a ficção amplia o debate sobre os neurodireitos para além dos meios acadêmicos e jurídicos, despertando a curiosidade, promovendo uma reflexão crítica e estimulando a discussão de questões que, cedo ou tarde, poderão fazer parte do cotidiano de todos nós e exigir um posicionamento ético e jurídico.

Depois do grande sucesso alcançado pelas duas primeiras temporadas, a Apple já anunciou a realização de uma terceira. É provável que os dilemas éticos explorados na série continuem a conferir a Severance o apelo necessário para que se consolide como uma obra ficcional paradigmática, capaz de promover a compreensão e a reflexão acerca dos desafios intrínsecos das neurotecnologias – a exemplo do que representaram, em seu tempo, as obras de Shelley, Huxley e Asimov.

Gisele Machado Figueiredo Boselli, advogada, especialista em Direto Médico e da Saúde pela, mestranda em Direito Médico e da Saúde e associada ao Instituto Miguel Kfouri Neto Direito Médico e da Saúde.

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