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Imagine uma sociedade em que alguma superstição antiga fizesse as pessoas acreditarem que quem tem o dedo médio da mão esquerda longo é descendente do Sol, e quem o tem curto o é da Lua. Sendo assim, por séculos, as pessoas com o dedo curto teriam sido alijadas dos trabalhos diurnos, e as que o têm comprido, dos noturnos. Assim, os de dedo longo ganhariam menos e teriam mais dificuldades na vida em geral, por estarem associados às atividades noturnas. Parece, e é, absurdo. Mas seria ainda mais absurdo se houvesse reconhecimento legal dessa discriminação sem razão de ser.

E é isso o que ocorre, cada vez mais, no Brasil. A diferença é apenas que não se trata do comprimento dos dedos, mas de uma combinação sempre elusiva da cor da pele, formato de nariz e boca e tipo de cabelo. A biologia já demonstrou amplamente que não há nenhuma base real para o conceito de "raça". As diferenças biológicas entre pessoas de "raça negra" não são menores que as diferenças entre pessoas de "raça negra" e de "raça branca". A "raça" é um conceito arbitrário, mais ainda em um país em que – felizmente – nunca houve separação oficial por "raças".

Desde o princípio da colonização, o povo brasileiro se formou pela mistura de gente fisicamente diferente; o português, já uma saudável mistura de suevo, visigodo e árabe, tinha filhos com a escrava africana ou com a índia. Esses filhos, por sua vez, em suas escolhas amorosas, tornavam ainda mais confusa uma determinação de origem "racial" que se tentasse fazer a partir das características físicas.

Até o começo do século passado, contudo, os progressistas em geral tentavam impor uma "teoria das raças". De Gobineau a Nina Rodrigues, muitos foram os que tentaram separar o inseparável, para dividir "cientificamente" as pessoas por um critério que mais tarde a genética descobriria estar apenas na cabeça dos racistas. O auge desse horror veio com o nazismo, que apenas tornava política genocida de Estado a vanguarda da pseudociência da época.

E esse racismo ainda perdura. Há, ainda hoje, quem divida as pessoas em "negros" e "brancos", "orientais" e "índios", e – pior ainda – trate-as diferentemente de acordo com o veredito "racial" a que tenham chegado.

O assustador, contudo, não é que o racismo perdure. A imbecilidade humana, sabemô-lo todos, não tem limites; no final é o racista quem sempre acaba por se prejudicar, ao escolher por critérios tão insensatos. Assusta, sim, é que o Estado, na contramão da biologia e do bom-senso, adote essa mesma classificação. Temos, senhoras e senhores, uma ministra da Igualdade Racial, escolhida, entre outros critérios, pela sua suposta "raça". Temos cotas "raciais", temos dias dedicados oficialmente ao "orgulho racial", numa tentativa de melhorar a situação dos que foram vitimados pelo preconceito de "raça" apropriando-se do mesmo conceito para usá-lo ao revés.

Ora, o problema não é que os "negros" sejam maltratados, sim que haja imbecis que tratam mal algumas pessoas por acharem que elas são diferentes... por serem "negras". Por terem o dedo mais comprido, ou mais curto, sei lá. Por uma série de características físicas independentes umas das outras, que não determinam rigorosamente nada.

O problema é o separatismo, é a linha arbitrária que tenta dividir a raça humana a partir de um conceito pseudocientífico e pseudossocial de "raça". O que deve ser combatido não é este ou aquele preconceito (de "brancos" contra "negros", de "orientais" contra "índios"...), mas o preconceito em si. A superstição de que os seres humanos seriam divididos em "raças". É isso o que possibilitou os horrores nazistas; é esse o mal a combater.

Há alguns meses, tive de preencher no trabalho um questionário que, seguindo essa moda terrível, tinha um campo para "raça/cor". Não tive dúvidas: peguei a caneta e lasquei: "Raça humana, cor bege". Melhor isso que voltar ao nazismo e a suas diferenciações assassinas entre uma suposta "raça ariana" e uma suposta "raça judaica". Chega disso. Somos todos humanos, e basta!

Carlos Ramalhete é professor e filósofo

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