O Brasil deve reformular o seu sistema judiciário de modo a que as decisões de segunda instância sejam pronta e plenamente eficazes.| Foto: Agência Brasil

Não é de hoje que se cogita de alteração legislativa que torne possível o cumprimento imediato e integral das decisões judiciais que encerram a jurisdição de segunda instância. Desde 2011, foram apresentadas diversas propostas de emenda constitucional (PECs), cada uma procurando alcançar este fim por caminhos diferentes: ou 1. pela antecipação do trânsito em julgado à data do exaurimento da jurisdição de segundo grau, mesmo que admitido recurso especial e extraordinário, tudo com o reforço de se vedar, ainda, que a eles seja atribuído efeito suspensivo (modelo idealizado pelo ex-ministro do STF Cezar Peluso); ou 2. pela transformação dos referidos recursos em ações rescisórias, de modo a que o trânsito em julgado seja antecipado ao momento em que se esgote a jurisdição de segundo grau (PEC 15/2011 e a atual PEC 199/2019); ou 3. pela elisão da presunção de não culpabilidade do réu já a partir de sua condenação em segunda instância, independentemente do trânsito em julgado, que continuaria ocorrendo apenas depois de encerrada a jurisdição dos tribunais superiores (PECs 409, 410 e 411/2018).

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De todas as propostas, a PEC 199/2019 foi a única que vingou até o momento, inclusive tendo sido admitida pela CCJ, o que fez com que intenso debate se instaurasse a seu respeito, embora praticamente não exista dúvida séria quanto aos seus efeitos benéficos e quanto ao fato de ser ela a que melhor se ajusta ao nosso sistema processual constitucional. Apesar disso, o contrabando da questão para terreno político-partidário – pela súbita e tardia preocupação de militantes políticos com o início das execuções penais – fez com que, ao reduzido número de argumentos razoáveis em contrário, fosse acrescentado um grande leque de dúvidas cínicas, argumentos não sérios e inverdades puras e simples.

Mesmo assim – ou exatamente por isso – é preciso colocar as ideias a esse respeito em ordem. Para isso, é preciso sopesar os argumentos favoráveis e os contrários à PEC 199/2019.

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Em favor da PEC, os principais argumentos são os seguintes:

Como o Estado, vedando a autotutela, monopoliza o exercício da Justiça e como é muito alto o custo do Poder Judiciário, a prestação jurisdicional deve ser célere e efetiva. Ora, se ao fim de longos anos pagando impostos e custas processuais, o jurisdicionado recebe apenas uma decisão de eficácia mitigada e parcial, então seria preferível que os tribunais locais fossem extintos, como ressaltou desafiadoramente – mas com razão – o ex-ministro Cezar Peluso.

Se é verdade que toda instituição humana é falível, também é verdade que o duplo grau de jurisdição é suficiente – mesmo que não infalível, como nenhum sistema é – para se garantir um sistema de prolação de decisões justas. Então, atribuir aos tribunais superiores o papel de “terceira e quarta instâncias” é diminuir o seu papel de modo a que sirvam apenas: ou 1. para confirmar decisões já corretas (a imensa maioria, a se julgar pelo baixíssimo número de provimentos recursais); ou 2. para reformar decisões incorretas (uma minoria que bem poderia ser corrigida em ação rescisória, e não em recurso); ou 3. para, ironicamente, “errar por último”, confirmando decisões incorretas ou reformando decisões corretas.

Além disso, há de se prestigiar a jurisdição ordinária (primeira e segunda instâncias), por ser a mais próxima dos fatos e das provas e, também, por ser mais ágil que os tribunais superiores. Quanto maior o grau de eficácia das decisões ordinárias, tanto maior será a efetividade tempestiva da tutela dos direitos e da pacificação social.

A PEC, ressalte-se, não propõe qualquer alteração no artigo 5.º da Constituição Federal, pelo que não se pode duvidar seriamente de sua constitucionalidade, já que a alteração proposta concretizará o fim almejado (efetividade e tempestividade da tutela jurisdicional) sem qualquer violação a norma constitucional que possa eventualmente ser considerada cláusula pétrea.

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O acesso aos tribunais superiores não será extinto; apenas a natureza jurídica de sua via processual é que será alterada (de recurso para ação autônoma). Essa alteração tornará desnecessária a participação casuística dos tribunais superiores para a formação da coisa julgada em casos concretos (à exceção, é claro, nos de sua competência originária). Além disso, como o possível ônus financeiro da ação rescisória em caso de sucumbência (por improcedência ou extinção sem julgamento do mérito) é bem mais alto que o custo da interposição de recursos, a provocação dos tribunais superiores será feita com maior parcimônia, desafogando-os. A medida proposta permitirá que os tribunais superiores se dediquem, enfim, às suas verdadeiras missões constitucionais (proteção à lei, constitucional ou infraconstitucional, e uniformização da jurisprudência nacional): como reconhecido pelo próprio ministro Gilmar Mendes em seu Curso de Direito Constitucional, a jurisdição dos tribunais superiores deve tutelar o “interesse coletivo no desenvolvimento e aperfeiçoamento da jurisprudência”, e não interesses casuísticos e individuais das partes litigantes.

A ação rescisória e os recursos especial e extraordinário sempre tiveram uma hipótese de cabimento comum (“violação a literal disposição de lei”, “contrariedade a lei federal” e “violação a dispositivo constitucional”). Essa semelhança de natureza – e, portanto, de finalidade – já denunciava o fato de que a opção de se estabelecer o acesso aos tribunais superiores por via recursal sempre esteve fundada em uma mera convenção. Hoje, porém, esta opção, muito mais do que simplesmente arbitrária, é também desastrosamente anacrônica: os tribunais superiores não têm mais qualquer condição de julgar os seus recursos, não digo nem “com celeridade”, mas ao menos “com pouca demora”. E isso explica o número crescente de filtros jurisprudenciais de admissibilidade recursal, que, somados, tornam hoje praticamente impossível que um recurso especial ou extraordinário seja admitido.

Em suma, a consequência da PEC 199/2019 será a seguinte: uma vez esgotada a jurisdição ordinária em segundo grau, 1. a sentença civil poderá ser definitivamente cumprida desde logo, não se tratando mais, portanto, de mero cumprimento provisório, a rigor inútil ao autor, abreviando-se o tempo necessário à satisfação concreta de seu direito, já então cronicamente reconhecido em duplo grau; e 2. a pena imposta pela sentença criminal será executada imediatamente, evitando-se a impunidade e garantindo-se o direito da sociedade civil à efetividade do sistema penal, direito solenemente desdenhado pelos objetores da PEC, que talvez desconheçam o fato de a Corte Interamericana de Direitos Humanos jamais ter condenado o Estado brasileiro por violação a direito processual fundamental do réu, mas já o ter feito por impunidade e ineficácia do sistema penal.

À PEC, porém, foram levantadas as seguintes objeções:

A emenda seria desnecessária: o modelo atual já conteria mecanismos suficientes para que as decisões de segundo grau sejam eficazes, uma vez que os recursos especial e extraordinário não têm efeito suspensivo. Porém, o argumento é no mínimo fortemente descolado da praxe forense. Ora, a eficácia das decisões de segundo grau é, hoje, uma eficácia fortemente mitigada e precária, pois, ainda que os recursos interpostos contra elas não tenham efeito suspensivo como regra, isso não lhes garante a eficácia total que delas legitimamente se espera: 1. no âmbito criminal, a pena só pode ser cumprida após o trânsito em julgado, de acordo com a última revisão jurisprudencial feita pelo STF sobre o tema; e 2. em âmbito cível, na prática, é muito comum que juízes das execuções e ministros relatores dos recursos especial e extraordinário suspendam o processo “por cautela” – pior: ainda que nenhuma liminar suspensiva seja concedida, o exaurimento da jurisdição de segundo grau torna possível apenas o cumprimento provisório da sentença, procedimento que não contempla a finalidade mesma da execução: a entrega concreta ao autor do bem da vida por ele demandado e reconhecido como seu em duplo grau.

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Um segundo argumento, muito mais carregado de interpretação “criativa”, é o de que a emenda seria inconstitucional: a pretendida alteração dos artigos 102 e 105 da Constituição violaria, por via oblíqua, a presunção de não culpabilidade, cláusula pétrea que é. A objeção é juridicamente falsa, contudo: a Constituição, embora condicione a culpabilidade do réu ao trânsito em julgado, não define em parte alguma que este só pode ocorrer depois de encerrada a jurisdição recursal dos tribunais superiores. Além disso, se nem mesmo o duplo grau de jurisdição é princípio constitucional, quanto menos o será o modelo paquidérmico do “quádruplo grau” vigente no Brasil. Ora, os artigos 102 e 105 da Constituição não são cláusulas pétreas, pelo que podem perfeitamente ser modificados sem qualquer violação, mesmo que “indireta”, à presunção de não culpabilidade do réu.

Ninguém tem o direito de que a tipologia e o tratamento legal dos recursos em dado momento histórico sejam indefinidamente mantidos no tempo. Fosse assim, o novo CPC seria inconstitucional por extinguir a vetusta figura dos embargos infringentes, tanto quanto a Emenda Constitucional 45, por estabelecer novo pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário (repercussão geral).

Um terceiro argumento é o de que a medida proposta seria espuriamente motivada: segundo seus defensores, essas PECs teriam motivação punitivista, casuística e fulanizada em Lula. Porém, o argumento é irrelevante quanto à alegada “pretensão punitivista” e falso quanto à centralização na figura de Lula: irrelevante, porque ao legislador – especialmente o constituinte derivado, como é o caso – é dado considerar melhor que as execuções criminais ocorram já a partir da condenação em segundo grau; e falso, porque tais propostas são feitas desde 2011, muito antes da investigação e da condenação de Lula por seus crimes; além disso, a PEC 199/2019 não poderá retroagir os seus efeitos aos recursos especiais e extraordinários interpostos antes do início de sua vigência.

E mais, o argumento é ocioso, porque trivial: toda e qualquer alteração legislativa sempre decorre de contextos sociais específicos, de motivações axiológicas determinadas e das ponderações teleológicas de seus proponentes, o que, porém, é irrelevante para o exame objetivo de sua compatibilidade com a Constituição.

Um quarto argumento – já em âmbito estritamente cível – é o de que a proposta seria processualmente inconveniente:caso uma sentença seja cumprida definitivamente, com levantamento sem caução pelo autor vitorioso, e caso a nova “ação revisional especial” (substituta do recurso especial) seja julgada procedente pelo STJ, será em tese muito difícil a reversão dos efeitos deste cumprimento, isto é, o retorno ao status quo ante.

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No entanto, o argumento se funda em um falso problema, pois essa circunstância já existe e, aliás, sempre existiu: mesmo no atual sistema, sentenças transitadas em julgado podem ser rescindidas e, até onde se sabe, nunca se sustentou seriamente que a ação rescisória deveria ser dotada de efeito suspensivo só porque o cumprimento definitivo da sentença rescindenda poderá produzir efeitos de difícil reversão.

Além disso, o argumento é gravemente irrazoável desde a perspectiva da justa distribuição entre as partes do ônus temporal do processo e dos riscos inerentes à falibilidade dos julgadores: depois de exaustiva instrução, sentença de procedência e sua confirmação pelo tribunal, é sem dúvida mais razoável que, a partir de então (e não se passou pouco tempo até aqui!), seja o réu quem se ponha a esperar eventual tutela jurisdicional rescisória, a ser oportunamente cumprida, aliás com as mesmas dificuldades e os mesmos riscos de execução frustrada que o autor vitorioso tem, hoje, para cumprir a sentença e o acórdão que reconheceram o seu direito.

Sopesados dialeticamente os argumentos favoráveis e contrários à aprovação da PEC 199/2019, não parece haver dúvida razoável – nem tampouco isenta – quanto à incontornável conclusão de que, antes tarde do que nunca, o Brasil deve, sim, reformular o seu sistema judiciário de modo a que as decisões de segunda instância sejam pronta e plenamente eficazes.

Thomé Sabbag Neto é advogado.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]