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Educação infantil.
Educação infantil.| Foto: Bigstock

Nos 350 anos da escravidão, intelectuais, políticos, padres, empresários e trabalhadores brancos viam a escravidão de negros com a mesma naturalidade que hoje vemos a desigualdade na qualidade da educação, conforme a renda e o endereço da criança. Demorou para surgirem reações contra maus tratos, mas sem tocar na estrutura escravocrata. Da mesma maneira, nas últimas décadas implantamos medidas favoráveis à educação pública, mas sem estabelecer a meta de dar acesso ao filho do pobre a mesma escola do filho do rico.

A defesa da Abolição veio sob a desconfiança geral da sociedade: uma utopia impossível e ameaçadora ao estabelecimento social. Os humanistas eram contra os maus tratos, mas não conseguiam ver a possibilidade do fim do sistema hegemônico que considerava natural a desigualdade entre raças, como hoje é aceita a desigualdade educacional por renda.

A trincheira contra a abolição tentou adiar a data e indenizar os donos, mas perdeu. Mesmo assim, quando ela chegou, os não-escravos não aceitaram dar os mesmos direitos aos ex-escravos e seus filhos, negando-lhes terra e escola. Continua resistindo na última trincheira da escravidão: a escola como privilégio para poucos. A luta atual pela igualdade na qualidade da educação tem o mesmo lento ritmo.

Quase 100 anos depois da Abolição, criamos um sistema de escolas públicas municipais, programas para merenda e livro didático. Determinamos obrigatoriedade de matrícula dos 6 aos 14 anos; depois dos 4 aos 17. Implantamos Fundef, Fundeb, PNE-I, PNE-II, Piso Nacional Salarial, mas não nos atrevemos a uma estratégia educacionista. Mas nenhum partido, nenhum governo, de direita ou de esquerda, se compromete com uma estratégia com duas metas: o Brasil ter educação com a qualidade das melhores do mundo, e toda criança ter acesso igual a essa educação.

A ideia educacionista não seduz a opinião pública. A igualdade escolar é o gesto que ficou faltando na Abolição. A desigualdade na qualidade da escola é um resquício da escravidão, a última trincheira da elite social e econômica. Por isso é difícil um pacto social em torno da estratégia para colocar a educação brasileira entre as melhores do mundo, e que todas as escolas sejam concessão pública, abertas para todos. Mesmo assim, seguindo o exemplo dos abolicionistas, não podemos deixar de lutar por essa bandeira.

O “fim do tráfico”, o “ventre livre”, a “alforria dos sexagenários” foram importantes, como a prorrogação do Fundeb é um passo positivo, mas muito distante da Abolição Educacional: escola com a mesma qualidade para todos, independentemente da renda e do endereço: a implantação de um Sistema Unificado Federal de Educação.

Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília.

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