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Sentado a uma mesa sem sombra, em um bar de Palmeira dos Índios, no estado de Alagoas, o crítico literário Alfredo Bosi está discutindo aspectos multifacetados da obra de Graciliano Ramos Angústia. Junto dele, vê-se a figura do romancista José Lins do Rego. Eles trocam figurinhas e conversam sobre o escritor do modernismo naturalista. Ambos discutem a obra do alagoano. Dentro do amplo espectro de opções, uma vem de pronto à tona: a necessidade de união entre os fiéis leitores de Graciliano Ramos para ajudar a publicar a obra, já que o governo de Getúlio Vargas havia demonizado a obra. Todos estão tomando caipirinha de suco de caqui com essência de abóbora. É surreal essa beberagem. Súbito, chega um dos maiores críticos literários do país: Antônio Cândido.

“Olhem quem vem lá! O personagem Luís da Silva”, exclamaram em uníssono. Mais tarde, virão os franceses Zola e Balzac.

A famosa narrativa será capitaneada pela história de vida desse homem estranho, complexado, deprimido, jornalista de valor, mas tímido demais para ir a público lançar e discutir suas ideias. O autor por pouco não foi executado pela polícia política de Vargas. Acabou preso na Ilha Grande por dois anos, sem acusação objetiva. A vida de Luís da Silva interessa a todos. Vamos continuar ouvindo falar sobre as facetas da vida do personagem Luís que giram em torno de suas frustrações de conduta e, especialmente, dos complexos ligados à sexualidade. Ele é pessoa discreta, que, acovardado por sofrimentos pessoais, vive uma infância traumática. Esse personagem, amargurado, vai permear nossa narrativa até o fim. Foi funcionário público. E, apesar de solitário, se apaixona por uma moça de família muito pobre, uma vizinha chamada Marina.

O ato de narrar é centrado basicamente em monólogos interiores. Esse mar de agulhas e de fagulhas esconde-se em algum palheiro dentro da ampla praça de seus tormentos. Vale dizer que são pesadelos das trágicas experiências de um homem despreparado para lidar com os tristes acontecimentos que rotulam a precária existência do russo Fiódor Dostoievski. O fato é que os sofrimentos e traumas de Luís da Silva nos vão recordar a obra Crime e Castigo. Toda a complexidade de se matar uma pessoa emerge do texto. Tudo é fruto do drama de Luís: sobreviver em uma sociedade que o despreza e outra que o quer ver na prisão.

Os sofrimentos e traumas de Luís da Silva nos vão recordar a obra “Crime e Castigo”, de Dostoievski

Os críticos de plantão não enxergam assim. Para eles, o personagem Luís da silva vai se afundando na polpa da culpa, pois, a partir do momento em que Marina aceita seu pedido de casamento, ele tem de sair em busca de dinheiro, geralmente conseguido junto a um agiota judeu. A quem perguntar o que teria provocado esse drama? Podemos dizer que o protagonista foi vítima de uma sociedade que valoriza o dinheiro e se compraz em mostrar que ele está por trás de tudo. Sem grana, nem se pode comprar banana.

Luís vai se endividando e fica cada vez mais acuado, principalmente porque um novo personagem desponta no horizonte de salafrários: Julião Tavares, burguês que não trabalha, vive da exploração do prestígio e riqueza para coibir, oprimir, ofendendo os valores sociais. Essa subserviência ao capital para comprar o enxoval constitui uma das causa de vários dramas: a ruína moral de Luís da Silva, que se condiciona à mediocridade. É assombrado por vários complexos, sendo o pior o da “angústia de ser”. Luís até que escreve bem e tem trabalho, mas, inseguro, escreve por dinheiro.

Marina e Luís querem se casar. Ela é pobre, e certamente o noivo não terá condições materiais de satisfazer as necessidades materiais da noiva. Assim, ele se enterra no obituário financeiro do agiota; é preciso comprar roupas novas, tecidos e melhorar um pouco a casa decrépita onde vivem os noivos. Suas fraturas de caráter e de sensações disparam, de modo a levar o personagem a deixar aflorar os recalques psicológicos. Ele chega a tal ponto que sente prazer mórbido por ruídos estranhos, através da parede da casa de Marina, contígua à de Luís. Esses ruídos fisiológicos, como o do ato de urinar, exacerbam a sua traumatizada sexualidade. Vê-se, pois, transitar pelas areias escaldantes da libido atiçada uma chusma de veleiros sem velas e mulheres nuas que perambulam pela árida intimidade. Um delírio, um turbilhão de sensações doentias, até absurdas.

De súbito, retorna a figura de Julião Tavares para criar o clímax da história. Homem rico, ele se aproveita da pobreza da família de Marina e a seduz; ela se entrega a ele, engravidando. Ela vai precisar abortar. Luís descobre. Os amantes passam a se frequentar com certa regularidade. Os traumas agora se explicitam e esticam o pescoço para ver melhor o que está por vir. Espezinhado pelas dívidas, amargurado pelos “chifres” que lhe colocam na testa, traído pelo ricaço, premido para dar vazão à sua libido, Luís está com a vida por um fio.

Os fatores deterministas vão colhendo aqui e ali um buquê de lírios, açucenas e “penas”... e assim o narrador, em desespero, ruma para um fim absolutamente escabroso. Veja quanto sofrimento um homem humilde, como Luís, tem de suportar nesta vida para não arrebentar os miolos em qualquer parede de que emane o odor da urina da ex- noiva. A questão voa pelo ar e indaga: Machado de Assis também influencia o narrador? Não resta dúvida quanto a isso. Vejam que os polos narrativos do autor são o determinismo e o psicologismo, ambos arrastados até aqui pelas trapaças do destino e da vida. Machado poderá ficar encastelado na mesa que abre esta narrativa. Há lugar para ele, sem dúvida.

Embora se trate de o autor ter influenciado Graciliano Ramos, estamos ansiosos, esperando pelo desenlace da história. Fatídica a madrugada em que Luís da Silva espera que Julião Tavares saia da casa onde a noiva foi fazer aborto... Movido por toneladas de ódio represado, o protagonista persegue os passos do desafeto, acossado pelos mastins da raiva, amargura, angústia, até que Luís cometa o ato essencial de sua estilhaçada vida: atira-se sobre Julião Tavares e o enforca. Bom saber que o autor do crime deve sair logo da cena. Corre para casa a fim de se lavar – ou limpar o limo da culpa? Para isso, se banha até completar a higienização do corpo; e a depuração de sua mente destroçada, espalhando cacos de culpa por todo o lado?

Não consegue evitar o delírio psíquico; sente-se responsável e culpado. Leitor amigo, você acha que isso tudo aí atrás se pode atribuir ao criador da psicanálise, Freud? A obra tem uma linguagem que vara o sertão nordestino. O sofrimento de Luís da Silva, que o levou a cometer um delito, foi causa ou consequência de suas desgraças, caro leitor? A título de fecho, citamos um excerto no qual vamos observar in locu questões temáticas e de estilo, pertinentes e relevantes. Diz Graciliano sobre a própria obra: “Acho em Angústia numerosos defeitos, repetições excessivas, minúcias talvez desnecessárias. E tudo mal escrito. Mas, se apesar disso, der ao leitor uma impressão razoável, devo recordar com v. É possível até que as falhas tenham concorrido para levar na história aparência de realidade. E alguns capítulos não me parecem ruins”.

E a “angústia” se perpetua. Todos os personagens pagaram suas contas e ainda resta um tímido saldo em sua caixa de angústias.

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