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| Foto: ABM/Daniel Karmann/AFP

Quando uma criança gosta de algo, por exemplo, um desenho animado, ela não o assiste dezenas de vezes seguidas? Por quê, para quê? E como não cansa, não enjoa? Dão-se aí três ações: contemplar, decorar e recordar. Não por acaso as palavras decorar e recordar têm a mesma raiz etimológica, vêm do latim cordis, coração. Ou seja, decorar é guardar no coração e recordar é trazer algo dele. Mas o que se guarda no coração senão o que se ama? E, quando se ama, há outro fim que não o próprio amar? Sente-se o tempo passar? Quer-se ficar afastado do bem amado? Eis, então, o contemplar, pressupondo um bem amado que encanta, deseja-se e nele se deleita.

É pelo acúmulo de bens amados que formamos, aos poucos, o que se pode chamar de cultura pessoal. Não se confunde com tudo o que vai na memória, mas se constrói do pequeno ou grande resto guardado no coração da totalidade do que se testemunhou, viveu, leu, assistiu ou ouviu nessa vida. É o que dá forma ao nosso mundo emocional, fornecendo o repertório efetivo de possibilidades que realmente se levará em conta quando da escolha de quem se deseja ser e fazer nessa vida e, no fim das contas, delimita o horizonte real de uma visão de mundo, muitas vezes inexpressa ou não reconhecida.

Mal alimentada, a imaginação definha e se desacostuma a trabalhar com outro propósito

Mas, no sistema de ensino que temos, a contemplação é esterilizada muito cedo pela obrigatoriedade de se dar atenção ao que quer que seja – contemplar pressupõe conquista do sujeito pelo objeto, não a imposição deste sobre aquele –, com o decorar servindo a outros fins, como ir bem na prova. Não espanta, por consequência, que aquilo que se decora logo seja esquecido, se é que não acaba desprezado. Quantos, por exemplo, não têm má vontade com literatura porque foram obrigados a ler na escola?

A consequência disso é nefasta. Essas experiências essenciais de contemplar, decorar e recordar ficam relegadas às horas de aparente descanso, dificilmente vividas com sentido de cultivo e aprimoramento pessoal, mas apenas como lazer, hobby. O resultado inevitável é a inanidade da cultura pessoal. O que revelam os inúmeros “memes” nostálgicos das redes sociais sobre as infâncias e adolescências das últimas décadas, especialmente dos anos 1980 em diante? Que o que mais se guardou no coração foram brinquedos da época, programas de televisão encerrados, hits radiofônicos descartáveis, modas passageiras etc. Apenas o que marcou a infância, não por valerem grande coisa em si.

Daí ao fenômeno da adolescência esticada não vai nenhuma distância. Mal alimentada, a imaginação definha e se desacostuma a trabalhar com outro propósito, falhando miseravelmente quando exigida a conceber quem se quer ser e fazer nessa vida. Sem força a dar verossimilhança suficiente a alternativas de futuro, o destino mais comum parece inelutável: vencer na carreira profissional, obter ganhos materiais e adquirir status social. Não que esses objetivos sejam ilegítimos, mas o estreitamento das possibilidades de vida a apenas isso traz como salário, no fim das contas, o vazio existencial marcado pelo tédio, irmão siamês da inquietude angustiada.

A única diferença entre o adulto bem-sucedido e o fracassado é que este sofre desde logo dessa insatisfação vital, mas aquele não perde por esperar. Já não é preciso chegar ao meio do caminho de nossa vida para se sentir perdido, vazio. É dessa selva escura que se alimenta o mercado de autoajuda, as terapias de todo nome, as seitas, bem como a indústria da distração, disfarçada de cultura, esporte e turismo.

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