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Fidel Castro regularmente diz nos jornais cubanos (diários oficiais do governo) que existe ameaça de guerra nuclear em escala mundial, tendo por foco as Coreias e, secundariamente, o Irã. O tom apocalíptico do velhinho barbudo remete ao Antônio Conselheiro pregando para esfarrapados em Canudos. O andrajoso guru sertanejo dizia que em 1899 apareceria no nascente o ramo que se confrontará com a terra e a terra, em algum lugar, se confrontará com o céu e, então, numa chuva de estrelas será o fim do mundo. Em entrevista televisiva, o guru de agasalho esportivo disse que haverá um mar de fogo, de chamas, se a Coreia do Norte for atacada pelos aliados da Coreia do Sul. Presumo não haja liame parental; resta, como ligação, o messianismo postural.

Deixando de lado a troça, a si­­­­tua­­­­ção coreana tem aspectos interessantes a serem observados. Em ocasião pretérita, ao falar sobre as virtudes da democracia e os vícios das ditaduras, usei as Coreias como exemplo vivo dos rumos de cada vertente ideológica: o comunismo de carteirinha leninista e digital stalinista produziu monarquia absolutista idêntica àquelas destronadas mundo a fora faz alguns séculos; não bastasse a ditadura, a clausura ideológica gerou pobreza famélica. Na parte sul da península a liberdade econômica propiciou condição para a consolidação da liberdade política, resultando numa sociedade próspera, em pleno exercício da cidadania. O mesmo povo, as mesmas condições materiais e culturais: resultados agudamente distintos em menos de 60 anos. São, as Coreias, laboratórios vivos das consequências das opções políticas. Tudo seria muito asséptico, lindo, maravilhoso, se fosse apenas estudo de caso para alguma tese acadêmica, sem que a realidade do mundo pudesse ser afetada por essa assimetria. Porém há riscos porque não se tratam de fósseis políticos de civilizações extintas, sobre os quais paleontólogos se debruçam com a curiosidade de crianças e a sagacidade de gênios.

A família real norte-coreana vive sob tensão em razão dos pífios resultados econômicos. O povo, completamente à margem da realidade do mundo, privado de informações de rádio, televisão, jornais, parece estar em outro planeta. Contudo, ninguém governa diretamente a massa de excluídos; mes­­­mo os tiranos precisam de asseclas. O grupo intermediário é composto pelas elites econômicas, militares, ideológicas. Essas pessoas são mais perigosas para os tiranos do que o povo. As elites são estruturadas, articuladas, diferentemente da massa que é, por definição, desestruturada, desorganizada. Para o monarca manter o controle é preciso desviar o eixo da tensão. A guerra contra inimigo real ou imaginário é a melhor maneira de cimentar a obediência das elites porque ninguém se arrisca a sofrer a imputação de falta de patriotismo. Por isso as Coreias estão formalmente em guerra desde 1950 e, volta e meia, a Coreia do Norte pratica algum ato bélico. A família real sabe que a guerra total contra a Coreia do Sul liquidaria a fatura e a Coreia do Norte desapareceria do mapa, tal qual a finada Alemanha Oriental; assim, para manter o statu quo a melhor tática é fustigar de vez em quando para que não amaine a tensão e as elites internas comecem a ter ambições em relação ao trono.

Talleyrand disse a Napoleão: "Com as baionetas se pode tudo, menos sentar-se sobre elas." A família real norte-coreana mantém a baioneta em riste porque não tem legitimidade para exercer poder com a tranquilidade de quem o exerce sentado, sem o uso permanente da força. A pobreza, a ignorância, o claustro em que transformou um país inteiro, ficarão nítidos se for dissipada a cortina de fumaça criada com a artificial confrontação militar. A rigor, ninguém na Coreia do Sul deseja ardentemente invadir o norte. Quando a ditadura ruir os milhões de famintos analfabetos serão passivo que pesará durante décadas até que se chegue ao ponto de equilíbrio.

Para nós, não choverá fogo, es­­­trelas não cairão do céu. Contudo, o laboratório político do mesmo povo sob regime político diferente é alerta sobre o valor da democracia que na nossa história é ainda lampejo, não sol de brilho contínuo.

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