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O ministro Alexandre de Moraes, do STF, não demorou a se pronunciar sobre o imbróglio do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), que o governo insiste em aumentar mesmo depois de o Congresso Nacional ter derrubado, por maioria avassaladora, o decreto que elevava as alíquotas. Mas, diante da oportunidade de fazer um controle de constitucionalidade real – e não aquele inventado pelos ministros para reescrever leis conforme seu gosto –, Moraes não apenas tirou o corpo fora com um enorme malabarismo jurídico, como ainda sacou da cartola uma solução que extrapola as competências da suprema corte.
Na manhã desta sexta-feira, Moraes mandou suspender os dois decretos – tanto o do governo, que aumentava as alíquotas do IOF, quando o do Congresso, que derrubava o aumento – e determinou a realização, no próximo dia 15, de uma audiência de conciliação com representantes do governo, do Senado, da Câmara, da Procuradoria-Geral da República e da Advocacia-Geral da União. Na prática, ao menos por enquanto o imposto continuará a ser como era, sem as elevações desejadas pelo Planalto e pelo Ministério da Fazenda. À primeira vista, parece uma derrota do governo e uma vitória do Congresso e do pagador de impostos, mas a realidade é um pouco diferente.
Moraes suspendeu o decreto que de fato era inconstitucional – o do governo –, mas também suspendeu o decreto que estava de acordo com a carta magna, o do Congresso
Para derrubar os dois decretos simultaneamente, Moraes fez um duplo twist carpado jurídico. “Verifica-se que tanto os decretos presidenciais, por séria e fundada dúvida sobre eventual desvio de finalidade para sua edição, quanto o decreto legislativo, por incidir em decreto autônomo presidencial, aparentam distanciar-se dos pressupostos constitucionais exigidos para ambos os gêneros normativos”, argumentou o ministro, sem perceber (ou apesar de perceber) que, havendo “desvio de finalidade” no decreto que elevou as alíquotas, isso dá legitimidade ao Congresso para derrubá-lo, como está devidamente previsto no artigo 49 da Constituição. Ou seja, Moraes suspendeu o decreto que de fato era inconstitucional – o do governo –, mas também suspendeu o decreto que estava de acordo com a carta magna, o do Congresso.
Para completar, ao obrigar a sentarem-se em uma mesa de negociação, em pé de igualdade, aqueles que cometeram uma inconstitucionalidade e aqueles que a corrigiram, Moraes faz tábula rasa da controvérsia. A conciliação pode ser um instrumento aceitável em algumas ocasiões, quando se pode chegar a um meio-termo ou quando ambas as partes a solicitam, mas não para dirimir questões constitucionais. O decreto original do governo não passaria a ser constitucional ainda que Fernando Haddad, Paulo Gonet, Jorge Messias, Davi Alcolumbre e Hugo Motta “concordassem” com isso no dia 15. A constitucionalidade dos decretos é a questão crucial, e é especialmente para esse tipo de análise que uma corte como o STF existe. Mas, como disse à Gazeta do Povo a ex-juíza Ludmila Lins Grilo, o julgamento técnico foi substituído por um acerto político.
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E não só isso: ao ordenar que dois poderes da República “se entendam” em vez de arbitrar tecnicamente uma disputa em que ambos os lados estão alegando exercer suas prerrogativas constitucionais, o Judiciário não se comporta como Judiciário, mas como um superpoder acima dos outros dois, como um pai que coloca dois filhos brigões para conversarem e acertarem suas diferenças. Impossível não recordar de uma frase clássica de Dias Toffoli no “Gilmapalooza” de 2021: “Nós já temos um semipresidencialismo com um controle de poder moderador que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal”. Que todos os envolvidos – especialmente Câmara e Senado – aceitem uma solução dessas, e que ela pareça razoável a muitos outros brasileiros que não estão diretamente envolvidos no imbróglio, demonstra como a hipertrofia do STF já foi normalizada de forma preocupante.
Tanto o Legislativo quanto o governo tentaram capitalizar em cima da decisão de Moraes. Hugo Motta afirmou que ela “evita o aumento do IOF em sintonia com o desejo da maioria do plenário da Câmara dos Deputados e da sociedade”, a AGU disse que “valoriza a proposta de diálogo interinstitucional sugerida pelo STF, reconhecendo-a como um espaço importante para a resolução de conflitos”. Analisando mais friamente, percebe-se que, independentemente do desfecho final, o único vencedor definitivo é o próprio STF, que consegue consolidar ainda mais sua expansão, impondo-se como o “Poder Moderador” que nunca deveria ser; e perdem a justiça e a Constituição, substituídas por acertos e “conciliações” que podem “legalizar” o ilegal.