Juíza do trabalho havia obrigado a Loggi a contratar com carteira assinada os 15 mil entregadores independentes.| Foto: Reprodução/YouTube
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Em um intervalo de poucas semanas, duas decisões de primeira instância na Justiça do Trabalho paulista revelaram o tamanho da dificuldade de compreender o novo mundo das relações profissionais trazido pela tecnologia, e os riscos do apego incondicional a concepções que já não se aplicam a todas as atividades. A controvérsia se deu em torno da existência ou não de vínculo empregatício entre motoboys e aplicativos de entrega de refeições.

No início de dezembro do ano passado, a 8.ª Vara do Trabalho de São Paulo reconheceu o vínculo entre motoboys e a empresa Loggi, impondo a ela uma série de exigências como a contratação pelo regime da CLT, com limitação de jornada de trabalho, oferta de equipamentos de segurança e pagamento de adicionais de periculosidade. Semanas depois, o Tribunal Regional do Trabalho da 2.ª Região suspendeu liminarmente a decisão – o mérito ainda não foi analisado. Em janeiro, foi a vez da 37.ª Vara do Trabalho, também em São Paulo, decidir em favor do iFood, negando a existência de vínculo empregatício. Em ambos os casos, as ações tinham sido movidas pelo Ministério Público do Trabalho.

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Um fator que contribui para a manutenção da controvérsia é a ausência de jurisprudência nos tribunais superiores

A Consolidação das Leis do Trabalho trata do vínculo empregatício no artigo 3.º, definindo o empregado como “toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. Com essa formulação, consagrou-se a noção de que o vínculo exige cinco características: pessoa física, pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade – na ausência de qualquer um deles, não se pode considerar que há o vínculo. Por exemplo, se um motoboy é contratado na qualidade de microempreendedor individual (MEI), em tese não haveria relação trabalhista, mas um contrato firmado entre duas pessoas jurídicas. Em sua defesa, um dos argumentos da Loggi foi justamente o de apenas trabalhar com profissionais que têm registro de MEI.

No entanto, o principal argumento usado contra o reconhecimento de vínculo empregatício reside na inexistência de outra das características, a subordinação. O motoboy tem liberdade para cumprir a jornada que desejar, nos dias e horários que lhe forem mais convenientes, e pode inclusive trabalhar simultaneamente para aplicativos concorrentes entre si. Por este ponto de vista, também não seria possível considerar que o motoboy tem o status de empregado – o mesmo raciocínio tem sido usado também para motoristas de aplicativos com Uber e Cabify.

Não há como ignorar que a persistência do desemprego empurra muitos brasileiros para o trabalho com aplicativos – são pessoas que muito provavelmente não estariam dirigindo ou fazendo entregas se tivessem oportunidade de emprego em suas áreas de origem. Este mercado reproduz, em parte, os fatores que atingiram os caminhoneiros: em ambos os casos, há excesso de oferta, o que joga para baixo o preço do serviço realizado. Com isso, a necessidade de garantir o sustento pode levar a casos de jornadas extenuantes, colocando o profissional em situações de risco devido ao cansaço. No entanto, sob o pretexto de coibir os abusos, a pretensão de reconhecimento de vínculo empregatício quando não estão configurados todos os requisitos exigidos para tal coloca em risco toda uma atividade, mais uma vez onerando indevidamente a oferta de trabalho.

Um fator que contribui para a manutenção da controvérsia é a ausência de jurisprudência nos tribunais superiores, especialmente o Tribunal Superior do Trabalho. Em uma ação que chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e envolvia o aplicativo Uber, a Segunda Seção até afastou a existência de vínculo em agosto do ano passado; o centro do debate, no entanto, não estava no tema propriamente dito, e sim em um conflito de competência – o motorista não pleiteava o reconhecimento do vínculo empregatício, mas a reativação de seu cadastro, o que o STJ considerou ser caso para a Justiça comum, não para a Justiça do Trabalho. Enquanto as ações não chegarem ao TST, continuará havendo decisões contraditórias nas instâncias inferiores, causando insegurança jurídica que prejudica e ameaça todo um novo modelo de negócios.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]