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Eleição municipal de 2020 deixa lições para a disputa presidencial de 2022.
Praça dos Três Poderes, em Brasília.| Foto: Marcos Correa/PR

Tema recorrente neste período eleitoral, e especialmente neste segundo turno, é o da democracia. Pululam cartas e manifestos “pela democracia”. Apoios são definidos e anunciados porque determinado candidato é considerado “democrata” e seu adversário, uma “ameaça à democracia”. A tensão institucional em que às vezes se fica à beira da ruptura não é um exagero: ela é real e mostra como fazem falta os autênticos democratas nos mais altos escalões do poder. Essa ausência, aliás, permite também que a democracia seja agredida de forma mais sutil: afinal, é em nome da “democracia” que se comete, agora, até mesmo censura prévia, uma contradição que infelizmente não tem sido percebida por muitos, a julgar pela timidez das reações de boa parcela da opinião pública e da sociedade civil organizada. Hoje está claro que é muito fácil defender a democracia com palavras; muito mais difícil é compreender o que realmente é a democracia e agir como democrata. Mas é disso que o Brasil mais necessita agora.

Do PT e de Lula não se pode dizer, nem por um minuto, que sejam amantes da democracia. Por mais que, desde sua transformação em ficha-limpa, Lula venha sendo descrito como “democrata” e “moderado” por boa parte dos formadores de opinião, a realidade os desmente. Não pode ser democrata um amigo e apoiador de ditadores, principalmente na América Latina – e não procede nem mesmo o argumento de que Lula é, sim, aliado de ditadores, mas não endossa seus métodos, pois a parceria continua firme mesmo depois de instalado o arbítrio em nações como Cuba, Venezuela e Nicarágua, sem que haja uma crítica sequer; pelo contrário, as manifestações de apreço se mantêm. Não pode ser democrata um adversário contumaz das liberdades de expressão e de imprensa, como demonstram a atual ofensiva no TSE para censurar indivíduos e empresas de comunicação, e as repetidas promessas de controle dos meios de comunicação (sob o eufemismo da “regulação da mídia”). Não pode ser democrata quem protagonizou dois megaescândalos de subversão e fraude contra a democracia brasileira por meio da compra de apoio parlamentar.

Do PT e de Lula não se pode dizer, nem por um minuto, que sejam amantes da democracia

Ainda que Jair Bolsonaro não tenha chegado nem de longe aos mesmos patamares de seu adversário deste segundo turno, muito de sua atuação, tanto em discursos quanto em atitudes, desde os primeiros dias de seu mandato, demonstrava clara carência de uma verdadeira cultura democrática, o que fez acender uma luz amarela – e mesmo vermelha – para um número importante de atores políticos. Cada fala antidemocrática acabou sendo respondida com reações fortes dos demais poderes e dos formadores de opinião, algumas legítimas e outras exageradas e eventualmente abusivas. A resposta de Bolsonaro quase que invariavelmente foi a da escalada, não a da distensão, tendo como alvo especialmente a imprensa e o Supremo Tribunal Federal. Embora com razão quanto ao mérito em muitas dessas tensões, sobretudo com relação ao Judiciário, a forma quase sempre foi equivocada, o que dificultava a solução e debilitava a coesão institucional. Nada disso é democrático, e quem se nega a perceber nesses casos o flerte com a ruptura de lado a lado, Executivo e Judiciário, padece da mesma cegueira seletiva que acomete defensores de Lula que o consideram um “democrata”.

O país necessita de um governo que realmente compreenda o valor da democracia e tenha tamanho apreço por ela que, diante de uma crise institucional, demonstre a firme intenção de desarmar as bombas e buscar não a escalada agressiva, mas a solução que restaure a normalidade. Isso nada tem de utópico; é perfeitamente possível, mesmo para alguém com uma propensão a reações destemperadas, quando se tem a consciência de que as ferramentas para isso já estão postas. É mais difícil para quem, tendo consciência dessas ferramentas, as utilizou de forma sorrateira para precisamente subverter a democracia. O verdadeiro democrata sabe que não há saída para eventuais impasses fora da Constituição; ela não é um acessório que pode ser descartado de acordo com a conveniência, mas é a fundação sobre a qual se constrói uma democracia sólida. E ela permite que as controvérsias sejam resolvidas, seja pela negociação honesta, quando há disposição mútua para tal, seja pelo uso firme dos freios e contrapesos que o ordenamento jurídico nacional já prevê, mas que nem sempre são empregados. Mas apenas quem tem uma profunda convicção democrática é capaz de agir bem e fazer a melhor escolha diante de cada impasse; só o grande estadista desarma as bombas com firmeza e elegância.

A cultura democrática exige compreender que os brasileiros têm convicções e preferências diversas a respeito de diversos assuntos. Ainda que tais convicções e preferências estejam equivocadas, não há justificativa para a hostilização ou para o confronto irracional. As críticas consideradas injustas devem ser respondidas não com a desqualificação generalizada do adversário – seja no campo político, seja na opinião pública –, mas com a ação pontual e, sobretudo, com a exposição serena da verdade. As diferenças não se resolvem na força, mas pela troca livre de fatos e ideias na arena da opinião pública; a cultura democrática exige confiança no poder do diálogo.

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