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Caixa com vacinas contra a Covid-19
Atraso no cronograma de vacinação por parte do governo federal fez com que governantes locais buscassem alternativas para a compra de imunizantes.| Foto: Gilson Abreu/AEN

Ainda que o imbróglio do envio de vacinas prontas e de insumos provenientes da China e da Índia já esteja resolvido, ele escancarou uma deficiência na estrutura brasileira de saúde pública: a dependência crescente do produto externo para o sucesso dos programas de imunização brasileiros. No caso da Covid-19, o Instituto Butantan e a Fiocruz assinaram acordos com a Sinovac e a Universidade de Oxford/AstraZeneca, respectivamente, para que sejam capazes de produzir localmente o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), mas isso ainda deve levar vários meses; por enquanto, o insumo terá de ser importado, com todos os possíveis entraves que o país acabou de presenciar.

A transferência de tecnologia para que também o IFA seja feito aqui significa que, mais cedo ou mais tarde, Butantan e Fiocruz terão a chance de realizar localmente todo o processo de produção das vacinas – decisão extremamente acertada em um cenário no qual existe uma corrida global por um produto cuja oferta ainda é muito menor que a demanda. Mas a eventual autossuficiência futura na vacina contra a Covid-19 não atenua o fato de que o país entrou nesta corrida em posição desfavorável e, pior ainda, vem assistindo, já há algumas décadas, a um processo de sucateamento na produção de vacinas que ameaça um programa reconhecido como referência mundial.

Sucateamento da estrutura pública, dependência cada vez maior de insumos importados e falta absoluta de condições para a entrada da iniciativa privada ameaçam o desempenho brasileiro em um serviço de excelência

Reportagem da Gazeta do Povo mostrou que os laboratórios públicos – além de Butantan e Fiocruz, a Fundação Ezequiel Dias (Funed), o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar) e o Instituto Vital Brazil – são responsáveis, hoje, por 75% das vacinas aplicadas no Programa Nacional de Imunização (PNI). No entanto, eles não realizam o ciclo completo de produção para boa parte desses imunizantes, dependendo da importação de vários insumos, não apenas o IFA. Em alguns casos, a participação dos laboratórios nacionais se limita às últimas etapas, de formulação, envase, rotulação e empacotamento.

O sucateamento começou a partir dos anos 2000, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) editou normas que colocariam os laboratórios brasileiros em pé de igualdade com os europeus e norte-americanos em termos de boas práticas. No entanto, não houve recursos suficientes para realizar esse melhoramento, minando a autossuficiência brasileira na produção de vacinas. A situação se deteriorou ainda mais a partir de 2012, segundo o professor da USP Marco Antonio Stephano, ouvido pela reportagem.

Enquanto isso, a produção de vacinas também é vítima de um vício tradicionalmente brasileiro, em que o Estado, mesmo entregando um serviço ou produto de forma cada vez mais precária, impede o setor privado de realizar a mesma tarefa de forma satisfatória. Os incentivos para que laboratórios particulares se estabeleçam no Brasil e produzam vacinas são nulos. Legislação, custos e a política de compras do governo inviabilizam vacinas privadas feitas localmente, pois elas não têm a menor condição de competir com o produto dos laboratórios públicos, beneficiados com uma série de isenções tributárias.

Sucateamento da estrutura pública, dependência cada vez maior de insumos importados e falta absoluta de condições para a entrada da iniciativa privada ameaçam, assim, o desempenho brasileiro em um serviço de excelência. Não se trata apenas, portanto, da situação emergencial causada pela Covid-19, mas do futuro do combate a várias outras doenças que o Brasil conseguiu erradicar com sucesso. Reativar o investimento público é importante, mas ainda mais urgente é eliminar as travas que tornam o Brasil inacessível aos laboratórios privados para a produção de vacinas. Uma legislação e uma política industrial inteligentes poderiam ter feito a diferença na imunização contra o coronavírus, com disponibilidade muito maior de vacinas neste momento inicial, e certamente fariam a diferença no futuro, seja diante de novas doenças, seja para manter o país livre de antigos males.

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