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Deltan Dallagnol
Decisão do TSE que cassou mandato do deputado federal Deltan Dallagnol foi criticada por parlamentares e membros da sociedade.| Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

A decisão teratológica do Tribunal Superior Eleitoral que retirou o mandato de Deltan Dallagnol (Podemos-PR) com base em uma interpretação bastante extensiva e completamente inaceitável da Lei da Ficha Limpa, na contramão de toda a doutrina sobre a proteção dos direitos políticos dos cidadãos, provocou indignação no parlamento federal. Com exceção do petismo – que jamais perdoará qualquer ex-integrante da Lava Jato por ter revelado as falcatruas operadas pelo partido –, de seus aliados de esquerda e de figuras como o senador Renan Calheiros, as manifestações na Câmara, no Senado e em Legislativos estaduais foram majoritariamente de uma revolta justa. Afinal, não havia a menor base jurídica para que Dallagnol tivesse sua candidatura impugnada, pois ele não se encaixava em nenhuma das hipóteses de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa, como já demonstramos aqui.

A indignação, que não é apenas dos parlamentares, mas de boa parte da sociedade civil, se insere em um contexto mais amplo. Qualquer pessoa de bom senso percebe a inversão de valores completa que existe quando aqueles que se empenharam de forma abnegada e heroica no combate à corrupção, aplicando a lei com dureza, mas não ao ponto de transgredi-la, são agora punidos de forma arbitrária, enquanto os protagonistas dos escândalos de corrupção – o mensalão, o petrolão e tantos outros – estão livres, leves e soltos, ocupando posições de mando. Tudo isso graças ao Poder Judiciário, que, em nome do “garantismo” e afirmando estar combatendo supostas irregularidades processuais, tomou decisões cujo efeito prático foi a soltura de corruptos, cujos crimes estavam fartamente documentados, e a punição dos que combateram a ladroagem. Como se não bastasse, os tribunais superiores ainda se lançaram em uma campanha de demolição sistemática de direitos e garantias fundamentais, especialmente a liberdade de expressão e o devido processo legal. Como fazer o gênio voltar para a garrafa?

Se a lei é distorcida ou ignorada por uma corte para perseguir um deputado cujos únicos “crimes” foram trabalhar para colocar ladrões na cadeia e criticar os desmandos de um Judiciário que prejudica o combate à corrupção, os freios e contrapesos precisam entrar em cena

Se o Judiciário hoje se julga capaz de fazer o que bem entender, isso ocorre em parte graças à omissão do Poder Legislativo. Quando Alexandre de Moraes resolveu abolir a imunidade parlamentar “por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” para mandar prender o então deputado Daniel Silveira, em fevereiro de 2021, a Câmara não apenas se omitiu: ela endossou o arbítrio ao votar para manter a prisão – só posteriormente a casa adotou o trâmite correto, abrindo um processo por quebra de decoro. Quando inúmeros parlamentares foram vítimas de censura prévia, perdendo o direito de publicar em mídias sociais, também por ordem de Moraes, a mobilização foi quase inexistente. Mesmo que o ministro do STF tenha considerado e ainda considere estar defendendo a democracia, suas decisões, na prática, têm violado sistematicamente o direito constitucional à liberdade de expressão e uma série de garantias dos réus, nos inquéritos abusivos iniciados em 2019 – e, ainda assim, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), nada fez, por mais que a casa por ele presidida seja o principal contrapeso constitucional ao STF. As invencionices jurídicas e ataques à liberdade de expressão cometidos pelo TSE, chamados eufemisticamente de “arco de experimentação regulatória” por Edson Fachin, e que desequilibraram o pleito de 2022 só foram denunciados pelos que eram diretamente atingidos, enquanto o restante do Congresso se omitia ou aplaudia.

O poder não admite o vácuo, diz o adágio: se o Legislativo abriu mão de exercer o papel de contrapeso ao Judiciário, este ocupou os espaços até se considerar absoluto. Cada omissão, das pequenas às maiores, tornou cada vez mais difícil restaurar o devido equilíbrio entre poderes e manter os tribunais superiores dentro do seu papel constitucional. O “ponto de não retorno” está cada vez mais próximo – mas ainda não foi atingido. O Congresso ainda pode reagir, mas para isso os parlamentares terão de fazer muito mais que simplesmente manifestar indignação na tribuna ou nas mídias sociais.

Há instrumentos valiosos que podem ser usados para que, ao menos, a sociedade finalmente se dê conta do tamanho da ameaça à democracia representada pela hipertrofia do Judiciário. Um deles é a CPI do Abuso de Autoridade, iniciativa do deputado Marcel van Hattem (Novo-RS) que já havia conseguido assinaturas suficientes no ano passado, mas não chegou a ser aberta porque o fim da legislatura já estava muito próximo. O deputado está repetindo o esforço para angariar apoio de colegas a um novo requerimento, e lançou um abaixo-assinado para que a sociedade também se faça ouvir. “[A decisão do TSE] é um pedaço de papel lido por um presidente de corte eleitoral que está cometendo abuso de autoridade, dentre tantos outros e que vai precisar ser corrigido pelo parlamento”, disse Van Hattem na quarta-feira.

Este é o momento da verdade, a hora dos parlamentares que sabem honrar o cargo para o qual foram escolhidos pelo povo. Se a lei é distorcida ou ignorada por uma corte para perseguir um deputado cujos únicos “crimes” foram trabalhar para colocar ladrões na cadeia e criticar os desmandos de um Judiciário que prejudica o combate à corrupção com suas decisões, os freios e contrapesos precisam entrar em cena. Não se trata apenas de fazer o que for possível para restabelecer o mandato de Dallagnol, mas também de impedir que outros “inimigos do partido” sejam injustiçados como ele foi e se tornem vítimas do que o ministro Luís Roberto Barroso descreveu profeticamente em abril de 2021: “Na Itália, a corrupção conquistou a impunidade. Aqui, entre nós, ela quer vingança”. Os parlamentares que se omitirem neste momento ajudarão a construir um Legislativo covarde, totalmente subserviente ao Judiciário. Comportam-se como o narrador do célebre poema E não sobrou ninguém, de Martin Niemöller: escondendo-se em um conveniente “não sou bolsonarista” ou “não sou lavajatista”, ignoram que um dia poderá chegar também a sua vez.

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