Em qualquer país que se pretenda democrático, é preciso haver alguns requisitos mínimos – ainda que os procedimentos específicos possam variar – para que alguém seja privado de sua liberdade. É preciso, por exemplo, que haja indícios mínimos de autoria, ou seja, de que aquela pessoa realmente cometeu um crime; quem vai preso precisa saber qual é a acusação exata que pesa contra si, tem direito à assistência de um advogado, não pode ser submetido a condições degradantes. Em qualquer país que se pretenda democrático, se tais direitos fossem desrespeitados, a sociedade civil, a imprensa, entidades defensoras dos direitos humanos e mesmo algumas autoridades já teriam se levantado contra o arbítrio de forma bastante veemente. Mas no Brasil de hoje, nada disso tem ocorrido.
Nas horas que se seguiram ao golpismo vândalo de 8 de janeiro, uma ordem do ministro do STF Alexandre de Moraes conseguiu o feito de superar a maior prisão em massa realizada pela ditadura militar (no caso, de cerca de 900 estudantes que participavam do célebre congresso da UNE no interior de São Paulo, em 1968): aproximadamente 1,5 mil brasileiros foram detidos e levados para um ginásio da Polícia Federal. Apenas uma parcela desse grupo havia sido pega em flagrante, na invasão das sedes dos três poderes; todos os demais foram levados já no dia seguinte àquele domingo de caos, e estavam no acampamento diante do quartel-general do Exército. Nos dias seguintes, houve a liberação de algumas centenas de pessoas, especialmente idosos, mães com crianças pequenas, doentes e moradores de rua. Outros puderam ficar em liberdade, usando tornozeleira eletrônica, embora submetidos a outras medidas bastante severas como a proibição do uso de mídias sociais. Mas cerca de 900 manifestantes estão até hoje nos presídios brasilienses da Papuda (masculino) e da Colmeia (feminino).
O deputado federal e colunista da Gazeta do Povo Marcel van Hattem – um dos poucos parlamentares que têm se preocupado com a repressão pós-8 de janeiro – narrou, em sua coluna do último dia 22, sua visita a ambos os presídios. Lá, ele encontrou “quase mil pessoas que provavelmente nunca pisaram em uma delegacia (a não ser, talvez, como vítimas da violência endêmica no Brasil) com suas vidas paradas, seus familiares e amigos aos prantos, seus empregos e negócios perdidos”. Mais grave ainda: na Colmeia, ele presenciou as citações das detentas e percebeu que elas eram genéricas e idênticas, sem a chamada “individualização da conduta”, ou seja: as mulheres presas não apenas desconheciam o crime que teriam cometido, como também falta qualquer elemento – relato, imagem ou algum outro tipo de evidência – que as ligue a esse crime.
Tudo aponta para o uso da prisão preventiva como castigo àqueles que o STF e a opinião pública chamam de “extremistas”, para exibi-los como troféu, como exemplo a dissuadir quem ainda tenha qualquer intenção golpista
Ora, isso não é apenas kafkiano; é completamente autoritário. E podemos dizê-lo mesmo admitindo que o 8 de janeiro não foi simplesmente um caso grave de vandalismo, mas o ponto culminante de um movimento que, sim, pretendia uma ruptura antidemocrática após a vitória de Lula nas urnas em outubro de 2022. Como afirmamos em nosso editorial sobre os acampamentos, se por um lado é inegável que, objetivamente, a mobilização diante dos quartéis (não apenas em Brasília) trazia consigo o pedido de um golpe de Estado, por outro lado muitas dessas pessoas estavam convencidas de que uma “intervenção militar” tinha amparo constitucional – um erro de interpretação que tornaria muito difícil uma eventual responsabilização por incitação a crimes contra o Estado Democrático de Direito. E, já depois do 8 de janeiro, insistimos que transformar todos os acampados em cúmplices do ataque à Praça dos Três Poderes nos parecia “bastante excessivo”, pois “uma prisão em flagrante por crimes contra o Estado de Direito ou por terrorismo não se justifica quando a conduta efetiva do detido não corresponde ao ato que se lhe imputa”, e que mesmo uma “investigação pelo possível crime de incitação” teria de ser conduzida “com enorme cautela”, considerando justamente essa possibilidade de erro dos manifestantes em relação ao alcance do artigo 142 da Constituição.
Fato é que centenas de brasileiros foram presos e seguem presos, um mês e meio depois, por estarem diante de um acampamento, sem que se descreva com o detalhe exigido pela lei qual teria sido a participação dessas pessoas nos crimes que lhes são atribuídos – houve quem, segundo o relato de Van Hattem, acabou detido apesar de ter chegado a Brasília depois que a invasão da Praça dos Três Poderes já havia ocorrido e sido repelida pelas forças de segurança. Os prazos processuais para a realização de audiências de custódia foram desrespeitados, e podemos afirmar que não há a menor fundamentação para se manter todas essas 900 pessoas presas preventivamente. O caput do artigo 312 do Código de Processo Penal elenca, como condições para a prisão preventiva, “prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. No entanto, mesmo no caso dos que estiveram na Praça dos Três Poderes com animus golpista e foram flagrados em vídeo participando dos ataques, já é praticamente impossível atestar que há perigo real em deixar que essas pessoas respondam em liberdade – a não ser que se imagine, com boa dose de paranoia, que elas voltariam a marchar sobre o Planalto assim que saíssem da prisão... Ora, se já é assim nas situações mais graves, quanto mais na de quem foi preso diante do acampamento, sem haver nem mesmo o “indício suficiente de autoria”? Tudo aponta para o uso da prisão preventiva como castigo àqueles que o STF e a opinião pública chamam de “extremistas”, para exibi-los como troféu, como exemplo a dissuadir quem ainda tenha qualquer intenção golpista.
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Tudo, portanto, se dá sem o menor respeito ao devido processo legal e às garantias democráticas. Apesar do evidente abuso, para esses brasileiros não existe o “garantismo” que coloca na rua até corruptos condenados em mais de uma instância, com evidências irrefutáveis de seus crimes – em uma inversão de valores surreal, detentas condenadas por crimes comuns na Colmeia ganharam direito à prisão domiciliar para abrir espaço às mulheres presas diante do quartel-general do Exército. ONGs de direitos humanos, entidades da sociedade civil organizada, Ministério dos Direitos Humanos, grupos de advogados que se notabilizaram na defesa de criminosos, a maioria esmagadora da imprensa e da opinião pública – para todos esses, não há nada de errado acontecendo na Papuda ou na Colmeia, pelo contrário: o arbítrio está sendo aceito e até aplaudido.
Podemos dividir as centenas de detentos em vários grupos: os que, mesmo permanecendo no acampamento, estavam conscientes da ilegalidade do golpe de Estado que pediam às Forças Armadas; os que se equivocavam de boa fé a respeito da suposta legalidade de uma “intervenção militar”; os que foram à Praça dos Três Poderes e participaram do ataque – seja por mera indignação, por espírito de manada ou por desejo premeditado de provocar um caos que levasse, quem sabe, à ação militar que terminasse com a ruptura; os que, na Esplanada, incitaram o quebra-quebra, mas, espertamente, não participaram dele para evitar um flagrante; e os que, tendo ido à Praça dos Três Poderes, não tiveram participação alguma na destruição, discordando dela. Qualquer brasileiro de bom senso e amante da justiça sabe que não é possível tratar da mesma forma todas essas pessoas, mas é exatamente isso que está ocorrendo, inclusive com violação dos artigos 9.º, 27, 30 e 32 da Lei de Abuso de Autoridade.
É preciso separar o joio do trigo para que os verdadeiros criminosos sejam punidos, mas o caminho para isso não é a prisão no atacado de inocentes para levar junto alguns culpados, nem o abuso da prisão preventiva, e sim a investigação criteriosa tanto sobre as reivindicações golpistas quanto sobre a destruição do 8 de janeiro. Neste último caso, é especialmente importante o uso de todas as imagens produzidas naquela tarde – e preocupa, como lembrou Van Hattem, que o governo Lula tenha colocado sob sigilo imagens do ataque ao Palácio do Planalto. É assim que se faz em uma democracia: investiga-se, acusa-se e pune-se, nesta ordem, sem arbítrio, sem sigilos, sem presos políticos.
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