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Manifestantes detidos na Academia Nacional de Polícia em Brasília.
Manifestantes detidos na Academia Nacional de Polícia em Brasília.| Foto: Reprodução/ Redes sociais

Na mesma decisão em que ordenou o afastamento temporário do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, determinou também que todos os acampamentos diante de unidades das Forças Armadas em todo o Brasil fossem desmontados no prazo de 24 horas. De acordo com a decisão, a Polícia Militar de cada estado deveria se encarregar do cumprimento da decisão, com apoio da Força Nacional e da Polícia Federal se necessário, e auxílio das prefeituras e dos comandos de cada quartel-general diante do qual houvesse acampamentos. Felizmente, a julgar pelos relatos, este processo tem se desenrolado sem confrontos entre manifestantes e policiais.

Desde o início espontâneo desses acampamentos, montados por brasileiros indignados com a vitória eleitoral de Lula em 30 de outubro de 2022, o protesto foi marcado pelo tom pacífico. No entanto, o caos na Praça dos Três Poderes, com violência, vandalismo e depredação, mudou tudo. Por mais que haja denúncias sobre possíveis infiltrados de esquerda – o chamado false flag – e por mais que as investigações ainda estejam em curso para se identificar os instigadores da invasão dos prédios do Planalto, do Congresso e do Supremo, é inegável que os invasores partiram justamente do acampamento localizado diante do quartel-general do Exército em Brasília, no Setor Militar Urbano da capital federal, recebendo o reforço dos manifestantes que vieram em ônibus provenientes de todo o país. Diante disso, a ordem de desmonte do acampamento em Brasília é perfeitamente compreensível, correta e necessária; e sua aplicação ao restante do país também é legítima, para reduzir o risco de que os acontecimentos de domingo se repitam em escala menor em outras cidades brasileiras.

É preciso repudiar a caracterização de todos os acampados como “terroristas”; além de não corresponder à realidade, é um artifício conveniente para justificar uma repressão mais ampla contra qualquer um que manifeste seu desagrado com Lula ou com o STF

No entanto, a proporcionalidade da decisão termina aí e, como em praticamente tudo que envolve os inquéritos abusivos conduzidos por Moraes no STF, o excesso acaba se fazendo presente. Ao ordenar a “desocupação e dissolução total (...) dos acampamentos realizados nas imediações dos Quartéis Generais e outras unidades militares”, o ministro também determinou a “prisão em flagrante de seus participantes pela prática dos crimes previstos nos artigos 2.º, 3.º, 5.º e 6.º (atos terroristas, inclusive preparatórios) da Lei 13.260, de 16 de março de 2016, e nos artigos 288 (associação criminosa), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (golpe de Estado), 147 (ameaça), 147-A, § 1.º, III (perseguição), 286 (incitação ao crime)”.

Esta “criminalização no atacado” não se sustenta tecnicamente e foge completamente ao bom senso. Há uma diferença abissal entre o vândalo que pretende forçar uma ruptura institucional, provocando um caos que leve à ação das Forças Armadas, e o brasileiro que permaneceu pacificamente diante de um quartel em alguma cidade brasileira ao longo dos últimos 70 dias, ainda que munido de slogans como “Forças Armadas, salvem o Brasil”. Quanto aos primeiros, é razoável que sejam investigados pelos crimes listados, embora haja controvérsia quanto à qualificação de terrorismo, já que a Lei Antiterrorismo exclui desta tipificação “a conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas (...) direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar”. Esta excludente, ironicamente, foi patrocinada pela esquerda para preservar camaradas ideológicos como black blocs e o MST, e sempre foi duramente criticada pela Gazeta do Povo, mas acabou consagrada na lei e agora poderia ser usada em benefício dos vândalos de Brasília.

Situação muito diferente, no entanto, é a dos acampados em outras cidades – e mesmo daqueles que, em Brasília, porventura não tenham aderido à invasão da Praça dos Três Poderes, permanecendo diante do QG do Exército. Em ocasião anterior, muito antes do 8 de janeiro, afirmamos que, embora essas pessoas estivessem objetivamente pedindo que as Forças Armadas dessem um golpe de Estado, muitas delas acreditavam equivocadamente na constitucionalidade de tal “intervenção militar”, incorrendo em um erro de interpretação que dificultaria sua responsabilização por crimes contra o Estado de Direito. Pode-se argumentar (e é possível que tenha sido essa a linha que levou à determinação de Moraes) que, uma vez tendo ocorrido o episódio da Praça dos Três Poderes, mesmo quem não participou diretamente da invasão pudesse ser considerado, de alguma forma, cúmplice do que ocorreu. Mas esta interpretação nos parece bastante excessiva: uma prisão em flagrante por crimes contra o Estado de Direito ou por terrorismo não se justifica quando a conduta efetiva do detido não corresponde ao ato que se lhe imputa. No máximo, admitimos como plausível uma investigação pelo possível crime de incitação, embora mesmo neste caso seria preciso proceder com enorme cautela, levando em consideração todos os aspectos que já mencionamos aqui quando comentamos as reivindicações dos brasileiros que estavam diante dos quartéis.

Por isso, é preciso repudiar a caracterização de todos os acampados como “terroristas”; além de não corresponder à realidade, trata-se de um artifício bastante conveniente para que o governo, o Judiciário e seus aliados na opinião pública promovam uma repressão mais ampla contra qualquer um que manifeste seu desagrado com Lula ou com os excessos do Supremo – afinal, contra terroristas vale tudo, prometeu Moraes em seu despacho, ainda que obviamente tenha evitado essas palavras.

Ao excesso de tal ordem de prisão emitida contra manifestantes que não se envolveram na invasão da Praça dos Três Poderes soma-se, agora, a enorme lentidão na triagem realizada pela Polícia Federal no ginásio da Academia Nacional da PF, e que já motivou queixas de parlamentares e do Instituto Nacional de Advocacia, que disseram faltar condições básicas às cerca de 1,5 mil pessoas levadas pela PF ao local – o grupo inclui tanto vândalos quanto manifestantes que ficaram no acampamento até ele ser desmontado. A PF, no entanto, além de já ter liberado mais de um terço dos detidos (especialmente idosos e mães com crianças pequenas), afirmou em nota que todos estão recebendo alimentação, água e atendimento médico quando necessário; Moraes, por sua vez, preferiu o deboche ao dizer que “terroristas” querem “que a prisão seja uma colônia de férias”, mais uma vez deixando subentendido que o necessário esforço para investigar e punir o caos em Brasília deverá abrir a porta para uma repressão tão ampla quanto injusta.

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