O lobby pela legalização do aborto no Brasil não dá trégua. A última tentativa de embutir o assunto na legislação ocorreu nas últimas semanas, quando a Câmara dos Deputados discutia o tema da violência doméstica.
Originalmente, o Projeto de Lei 1.444/2020, da deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), tratava apenas da proteção emergencial às vítimas de violência doméstica durante a pandemia de coronavírus. De forma geral, a preocupação com o tema é justificável: por causa da quarentena, tem havido um aumento na frequência desses crimes. A proposta original estabelecia, dentre outras medidas, que “constatada pela autoridade pública situações de agressão à mulher e/ou a seus filhos, o agressor deverá ser imediatamente retirado do convívio familiar.”
Mas, na tramitação da proposta pela Câmara, a deputada Natália Bonavides (PT-RN), escolhida como relatora do projeto de lei, acrescentou um artigo que elencava como prioritário o “pleno funcionamento dos serviços essenciais de saúde para mulheres e meninas, incluindo serviços de saúde sexual e reprodutiva.” Notoriamente, o termo “saúde reprodutiva” é utilizado para se referir ao acesso ao aborto.
Embora o texto da relatora não fosse claro, algumas organizações pró-vida enxergaram nesse trecho uma janela para a promoção do aborto, quando não da simples ampliação dos casos em que a prática é permitida. Não seria uma estratégia nova. Cientes de que a legalização do aborto é uma ideia reprovada massivamente por brasileiros de norte a sul, ativistas e parlamentares de esquerda costumam utilizar subterfúgios para avançar sua agenda ora no Judiciário, ora no Legislativo, em vez de enfrentar o debate franco. Foi assim, por exemplo, quando a epidemia do zika vírus se espalhou pelo país: grupos pró-aborto pediram ao STF que as gestantes diagnosticadas com a doença pudessem abortar seus bebês.
No caso do projeto tratando da violência doméstica, o plenário da Câmara dos Deputados removeu o trecho que mencionava a “saúde sexual e reprodutiva”. Os parlamentares agiram bem. Em circunstâncias normais, dificilmente o trecho do projeto serviria, por si só, para justificar a expansão dos casos de aborto. Mas, no cenário atual de confusão institucional, não era de se descartar a hipótese de que o próprio Supremo Tribunal Federal enxergasse na nova lei razão suficiente para modificar o entendimento legal sobre o tema. Pelo artigo 128 do Código Penal, o aborto é ilegal no país, mas não há punição se ele for realizado por um médico em duas circunstâncias específicas: quando a gestação for resultado de estupro e quando não houver outro meio de salvar a vida da mãe. Em 2012, o STF acrescentou à lista um terceiro caso, o da gravidez de anencéfalos; mas essa regra não existe explicitamente em qualquer norma legal.
Justamente por causa da insegurança criada, em grande parte, pelo Judiciário, seria interessante que a Câmara tivesse eliminado qualquer eventual brecha aberta pelo PL 1.444/2020. O ideal seria que a proposta fosse explícita ao afirmar que não promove a realização de abortos.
O projeto 1.444/ 2020, é bom lembrar, ainda depende do aval do Senado, onde pode voltar a ser modificado. Se a proposta sofrer alterações, terá de ser submetida a uma nova votação da Câmara dos Deputados antes de ser enviada ao presidente Jair Bolsonaro, que possui a prerrogativa de vetar trechos que considere inadequados. Bolsonaro já afirmou que não aceitará qualquer legislação em favor do aborto. Por isso, é pouco provável que a causa abortista avance por esse caminho.
Mas é preciso que os grupos pró-vida – e, em especial, os parlamentares pró-vida – continuem atentos para evitar a possibilidade de que o assunto retorne à pauta de forma escusa, sobretudo quando as crises econômica e sanitária ganham diariamente os holofotes. Quem defende mudanças na legislação sobre o aborto, seja para tornar a lei mais rigorosa, seja para torná-la mais branda, precisa estar disposto a debater o tema de forma aberta e aprofundada, levando em conta as duas vidas – a da mãe e a do bebê. Só será possível modificar a legislação sobre o aborto com um debate franco sobre o artigo 128 do Código Penal. Qualquer coisa além disso seria um desrespeito grave à democracia.
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