Enquanto a Câmara dos Deputados debatia a reforma da Previdência, outro projeto que captura a essência do ideário que levou Jair Bolsonaro à Presidência da República não ficou parado. O pacote anticrime idealizado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, sofreu um desfalque importante pelas mãos do grupo de trabalho criado dentro da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da casa. Por sete votos a seis, e contra a vontade do relator da matéria, Capitão Augusto (PSL-SP), o grupo excluiu do texto os trechos que tratavam do início do cumprimento da pena após a condenação penal por colegiado, em segunda instância.
Os deputados que votaram a favor da retirada destes dispositivos alegaram que o tema só poderia ser tratado em forma de emenda à Constituição, e não de lei ordinária. Um deles, Santini (PTB-RS), disse que o texto proposto por Moro era “uma grande inovação jurídica” e que, “do ponto da legalidade é que fica a dúvida. E na dúvida é melhor não errar. É melhor que façamos isso com a PEC”. Trata-se de um raciocínio bastante incompleto, e que ignora o escopo exato da alteração proposta pelo ministro da Justiça.
Moro não está realizando nenhuma “grande inovação jurídica”; está é adequando o texto infraconstitucional ao entendimento adotado pelo STF
A interpretação que permite o início do cumprimento da pena a partir da condenação em segunda instância tem sido a regra no país desde a redemocratização. Apenas no período entre 2009 e 2016 vigorou o entendimento de que era preciso esgotar todos os recursos em todas as instâncias para que um condenado fosse efetivamente para a cadeia para iniciar sua pena. Três anos atrás, o Supremo Tribunal Federal voltou a consagrar a tese que permite a prisão, com base no fato de que a análise da culpabilidade se encerra na segunda instância, cabendo aos tribunais superiores apenas a análise de questões formais do processo. Desde então, esta interpretação foi reafirmada em outros três julgamentos.
Ocorre, no entanto, que a lei infraconstitucional manteve dispositivos que contrariam o entendimento do STF. É o caso do artigo 283 do Código de Processo Penal: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Foi baseando-se também neste texto, e não só na interpretação de 2009 feita pelo Supremo, que o ministro Marco Aurélio Mello ordenou, em dezembro de 2018, que todos os presos sem sentença transitada em julgado fossem soltos, decisão revertida no mesmo dia pelo presidente do tribunal, Dias Toffoli. Portanto, quando Moro propõe uma nova redação deste artigo 283 em seu pacote anticrime, não está realizando nenhuma “grande inovação jurídica”; está é eliminando uma ambiguidade, adequando o texto infraconstitucional ao entendimento adotado pelo STF e que segue em vigor.
Leia também: Uma PEC para a prisão em segunda instância (editorial de 28 de abril de 2019)
Leia também: Um pacote anticrime abrangente e robusto (editorial de 6 de fevereiro de 2019)
Disso não se deve concluir que uma PEC seja de todo desnecessária. Infelizmente, o Supremo dá mostras de que pode reverter, mais uma vez, sua posição a respeito do momento em que pode ocorrer o início do cumprimento da pena. E a redação do inciso LVII do artigo 5.º da Constituição – “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” – permite algum grau de ambiguidade que tem gerado bons argumentos de ambos os lados do debate. Uma alteração constitucional poderia eliminar quaisquer dúvidas, e esta PEC, inclusive, já existe: é a 410/2018, que aguarda relator na CCJ e altera a redação do inciso LVII para “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.
A decisão de retirar do pacote anticrime os trechos sobre o início do cumprimento da pena após condenação em segunda instância, assim, é um equívoco, bem como os argumentos invocados para essa mutilação do projeto. A alteração do CPP não precisa ser feita por meio de PEC, e é necessária para conformá-lo ao entendimento atual do Supremo – entendimento este que esperamos ver confirmado quando finalmente forem a plenário as ações relatadas por Marco Aurélio.
Derrotas da esquerda deixam Lula mais dependente do Centrão para governar
O futuro de Pablo Marçal e da plataforma X em jogo; assista ao Sem Rodeios
Parentes de vítimas de crimes despertam simpatia do eleitor e conquistam cargos de vereadores
Comissão do Senado aprova por unanimidade Galípolo para presidente do BC; indicação segue para o plenário
Deixe sua opinião