O brasileiro honesto, que não tem bandido de estimação e que anseia por justiça tem todas as razões para estar desiludido diante de toda a reação política, midiática e jurídica que está, aos poucos, desmontando o legado da Operação Lava Jato. Na quinta-feira, essa desconstrução atingiu seu ponto culminante (até o momento) quando o STF manteve a suspeição do ex-juiz Sergio Moro no caso em que o ex-presidente Lula tinha sido condenado pelo caso do tríplex do Guarujá. A desilusão, no entanto, não pode deixar brotar a desesperança completa. A reversão deste quadro é possível – mas que ninguém se engane: será um processo longo e extremamente trabalhoso, e que encontrará todo tipo de resistência.
A primeira mudança, no entanto, não é prática, mas intelectual e cultural. Deixando de lado os casos evidentes de má-fé, conivência com a ladroagem e cegueira ideológica, o que estamos vendo agora é também o resultado tanto de correntes filosóficas de alcance mais amplo, como o dito “progressismo” que tende a atenuar a responsabilidade moral pelos atos individuais, quanto de doutrinas especificamente aplicadas ao direito, como o garantismo penal. Um sólido trabalho de reconstrução passa, primeiro, por universidades, think tanks, pelos espaços de opinião pública, para se criar (ou recriar) todo o arcabouço intelectual em que basear um combate efetivo à corrupção. Esta não é uma tarefa restrita a especialistas; todo brasileiro interessado neste bom combate é chamado a dar sua contribuição.
Não há mudança possível no combate à corrupção que não envolva também uma alteração radical no perfil do Supremo Tribunal Federal
Este esforço inclui, por exemplo, a busca pelas melhores práticas adotadas por países que conseguiram coibir a corrupção ou puni-la de forma efetiva quando ocorre. Se tantas democracias sólidas foram bem-sucedidas neste esforço, está mais que evidente que é perfeitamente possível haver leis e cortes rigorosas com a ladroagem ao mesmo tempo em que se preservam garantias básicas como a ampla defesa, o devido processo legal e o direito ao contraditório. Nestes tempos em que tantos pesquisam, difundem e debatem a experiência internacional em tantas outras áreas, da economia à luta contra a Covid-19, o combate à corrupção precisa integrar essa lista. Os bons exemplos internacionais precisam ser amplamente difundidos e imitados no Brasil; não é preciso reinventar a roda quando tantos antes de nós já tiveram sucesso. O estabelecimento dessa base teórica facilitará todas as mudanças práticas de que o país necessita para deixar de ser o paraíso dos corruptos.
E, do ponto de vista prático, se o Supremo Tribunal Federal é (como afirmamos em nosso último editorial) o principal promotor da impunidade em crimes de colarinho branco no Brasil, ao não punir e não deixar que se puna, independentemente das intenções dos ministros, não há mudança possível que não envolva também uma alteração radical no perfil da corte. Em todas as ocasiões em que tratamos das qualidades necessárias aos ministros do Supremo, deixamos claro que a intransigência no combate à corrupção era requisito essencial. Também é fundamental que os futuros membros da corte rejeitem as correntes ideológicas e jurídicas que descrevemos acima, e que estão na origem da leniência com a roubalheira, e ao ativismo jurídico que prima pela invenção de regras não previstas na lei ou na Constituição – artifício que também tem servido para justificar decisões recentes como anulações de condenações.
Infelizmente, a nomeação de ministros do Supremo – um dos legados mais duradouros que qualquer presidente da República pode deixar – continua sendo tratada com enorme descaso, tanto da parte de quem escolhe como da parte de quem aprova a escolha. O Brasil acabou de testemunhar todo o processo em torno da indicação de Kássio Nunes Marques por Jair Bolsonaro, bem como a constrangedora sabatina no Senado que resultou em sua confirmação para ocupar a vaga de Celso de Mello. Ao longo dos próximos dez anos, seis ministros deixarão a corte por atingir a idade-limite; o número é suficiente para que se forme maioria em qualquer votação.
Bons ministros geram boas decisões; mas não teremos bons ministros se todo o processo de escolha não for levado mais a sério. Quem vencer as eleições presidenciais em 2022 terá o direito de indicar dois nomes ao Supremo, e este tema precisa estar presente desde a campanha. Nos Estados Unidos, ainda durante a disputa de 2016 o então candidato Donald Trump chegou a divulgar listas com vários nomes de possíveis indicados; ainda que não se chegue a este ponto por aqui, cada candidato ao Planalto precisa, no mínimo, deixar claro que tipo de ministro pretende nomear. E não exageramos nem um pouco quando dizemos que este deveria ser um dos principais critérios a nortear a escolha dos eleitores, ao menos tão importante quanto, por exemplo, as convicções econômicas ou morais dos candidatos.
Mesmo bons ministros, no entanto, ficarão impedidos de tomar boas decisões se as leis que embasam tais decisões também não forem boas. E o Brasil, infelizmente, tem sido pródigo em desperdiçar a oportunidade de refinar suas leis anticorrupção. As Dez Medidas Contra a Corrupção, desenhadas pelo Ministério Público Federal e levadas ao parlamento com amplo apoio popular, refletido em milhões de assinaturas, poderiam ter sido refinadas em seus itens mais controversos, mas em vez disso foram repelidas e transformadas em algo completamente diferente, mais semelhante ao que se tornaria, depois, a Lei de Abuso de Autoridade, mostrando que a tendência do Congresso ainda é a de dificultar a vida não dos corruptos, mas daqueles que buscavam o fim da corrupção. Destino semelhante tiveram várias propostas do ex-ministro Sergio Moro no pacote anticrime, igualmente desfigurado no Congresso.
As oportunidades perdidas não se limitam ao que o Congresso faz, mas também ao que deixa de fazer. Os casos mais emblemáticos são os dos projetos de lei e de emenda à Constituição que tratam do foro privilegiado e, especialmente, da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância – esta deveria ser a principal batalha a se travar hoje no parlamento, dentro da agenda anticorrupção. A regra atual, que exige o fim de todos os recursos em todas as instâncias, garante que corruptos e corruptores explorem o emaranhado processual brasileiro, com seus infinitos recursos, e jamais passem um dia atrás das grades, uma anomalia que jamais foi a intenção do constituinte de 1988.
A pauta anticorrupção não tem como prosperar sem enorme pressão popular, que já deu resultados no passado recente
Todos os projetos neste sentido, entretanto, estão parados em alguma gaveta do Congresso, sem perspectiva de vir à luz no futuro próximo, mesmo se tratando de uma demanda da população e ferramenta importantes no combate à impunidade. Os parlamentares dispostos a não deixar o assunto morrer são poucos, e não estão em posições em que podem colocar os projetos para caminhar. O combate à corrupção tampouco foi tema de campanha nas recentes disputas pelo comando da Câmara e do Senado; também o governo federal, eleito na esteira da indignação popular com os escândalos protagonizados pelo petismo, não correspondeu à expectativa inicial – pelo contrário, em alguns casos chegou até mesmo a dificultar o combate à corrupção, como quando foram sancionados trechos bastante ruins da Lei de Abuso de Autoridade e do pacote anticorrupção.
Não bastam, no entanto, parlamentares e governantes comprometidos com a pauta anticorrupção. Ela não tem como prosperar sem enorme pressão popular, que já deu resultados no passado recente. Apesar da confusão de pautas que marcou a indignação generalizada das “jornadas de junho” de 2013, foi esse clamor que acabou com a PEC que retiraria poderes de investigação do Ministério Público. E, ainda mais recentemente, foram as ruas que criaram o clima para que Dilma Rousseff acabasse cassada por seus truques orçamentários. Enquanto não for possível retomar as manifestações multitudinárias, é preciso buscar outras formas de se manifestar e pressionar os poderes Executivo e Legislativo, além de garantir que, nas próximas eleições, possamos prestigiar quem tem trabalhado por mais lisura na política e repudiar tanto os corruptos quanto seus aliados que se dedicam a dificultar o combate à corrupção.
Este não é um receituário simples de se executar, nem que trará resultados imediatos. Exige paciência, persistência, atenção e mobilização constante, por um longo período de tempo. A renovação das instituições, especialmente do STF, é trabalho de anos, talvez de décadas. Mas precisa ser feito. Se abrirmos mão disso, nosso castigo será a repetição incessante do roteiro de escândalos que estouram, são investigados e, mais cedo ou mais tarde, terminam em impunidade. E não é esse o Brasil que a grande maioria dos brasileiros deseja.
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