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Jair Bolsonaro
Inquérito diz que ex-presidente chegou a participar de tratativas para decretar intervenção após a eleição, mas não assinou.| Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

O Brasil assistiu com perplexidade, nesta quinta-feira, à Operação Tempus Veritatis, desencadeada pela Polícia Federal por decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes, e que tinha como alvos o ex-presidente Jair Bolsonaro e diversos de seus aliados, incluindo ex-ministros, seu candidato a vice em 2022 e ex-assessores presidenciais. Dezenas de mandados de busca e apreensão foram executados, com quatro prisões preventivas decretadas até o momento. Bolsonaro teve de entregar seu passaporte, o que aconteceu no início da tarde, e se comprometer a não entrar em contato com os demais investigados.

A deflagração da operação policial se deu dentro do inquérito aberto no STF para investigar as chamadas “milícias digitais”, um dos vários inquéritos bastante controversos em andamento no Supremo e que já receberam inúmeras críticas por ignorar formalidades importantes do processo penal. Não passou despercebido, aliás, o fato de ter sido Moraes o responsável pelos mandados, ainda que os fatos narrados na decisão o colocassem no possível papel de vítima. De qualquer forma, a serem verdadeiras as informações ali elencadas, será forçoso reconhecer a existência de uma trama, envolvendo altos escalões do poder federal e das Forças Armadas, para que o resultado das eleições presidenciais de 2022 fosse anulado e Bolsonaro pudesse permanecer no poder – ou seja, pretendia-se uma ruptura institucional que, felizmente, jamais foi concretizada.

A decisão, de pouco mais de 130 páginas e com data de 26 de janeiro, traz transcrições de conversas entre vários dos investigados referentes à organização de atos populares de repúdio à vitória eleitoral de Lula em 15 de novembro de 2022, mas especialmente preocupante é a descrição feita pela Polícia Federal do que teria acontecido em torno da chamada “minuta do golpe”: uma proposta de decreto presidencial redigida, segundo a PF, pelo então assessor Filipe Martins e pelo advogado Amauri Saad, que previa a anulação das eleições de outubro, com realização de novo pleito, e a prisão de autoridades, incluindo dois ministros do STF – Moraes e Gilmar Mendes – e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

O Código Penal só trata dos crimes consumados ou tentados, o que obviamente não é o caso do golpe que teria sido tramado contra o resultado eleitoral de 2022

Ainda de acordo com a PF, com base em diálogos travados entre os investigados, Bolsonaro teria tomado conhecimento da minuta, sugerido alterações (excluindo os nomes de Gilmar e Pacheco), e ainda teria pressionado os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica a dar seu apoio a uma tentativa de manutenção no poder. Quanto a essa última afirmação, no entanto, não há na decisão nenhum outro elemento que a comprove, como reprodução de diálogos ou depoimentos. Mas há outras ações mencionadas na decisão com elementos que as embasam e permitem concluir que havia preparações em andamento para um eventual golpe, como o monitoramento dos deslocamentos de Alexandre de Moraes e a pressão, por parte dos militares interessados em uma ruptura institucional, sobre outros colegas para que também aderissem ao movimento.

A verdade é que a decisão final cabia ao então presidente da República, que jamais chegou a assinar o decreto – seja porque Bolsonaro percebeu a tempo o desastre que um golpe de Estado no Brasil representaria, seja por ter sentido que não teria o apoio necessário por parte das Forças Armadas – e Lula tomou posse na Presidência da República. Uma ausência notável da decisão é a dos atos de 8 de janeiro de 2023 na Praça dos Três Poderes, que mereceram uma única menção: segundo a PF, “a expectativa dos investigados em obter êxito na referida empreitada criminosa permaneceu durante o mês de dezembro [de 2022], adentrando, inclusive, em janeiro de 2023, já durante o mandato do atual presidente da República, principalmente quando se desencadearam os atos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023”.

E, se a minuta jamais se tornou um decreto, ou seja, o golpe jamais aconteceu, é preciso fazer um questionamento de suma importância. O Código Penal só trata dos crimes consumados ou tentados, o que obviamente não é o caso do golpe que teria sido tramado contra o resultado eleitoral de 2022. A tradição do Direito Penal brasileiro jamais puniu os crimes meramente cogitados, restando o caso dos chamados “atos preparatórios”. Nem aqui, no entanto, podemos afirmar que haja uma zona cinzenta. A jurisprudência tem considerado não passíveis de responsabilização crimes para os quais até houve preparação, mas que não chegaram a ser tentados. Mesmo os atos preparatórios só podem ser punidos se constituírem crimes em si mesmos – em um caso emblemático de 2021, o STJ manteve a absolvição de duas pessoas acusadas pelo crime de roubo: elas chegaram a quebrar o cadeado e o portão da casa que pretendiam roubar, mas avistaram policiais e fugiram antes de entrar no imóvel.

Portanto, quando Moraes afirma que “está comprovada a materialidade dos tipos penais de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-1 do Código Penal) e de tentativa de golpe de Estado (art. 359-M) do Código Penal”, está novamente subvertendo as normas legais, já que não houve golpe, nem mesmo tentativa – e os motivos para que isso não tenha ocorrido são irrelevantes do ponto de vista penal. Teria havido, sim, a preparação, mas redigir minutas não é crime. Na mais extrema das hipóteses, seria admissível no máximo uma denúncia por associação criminosa, por possível incitação ao crime por parte daqueles que buscaram angariar apoio de outros militares para seus planos, ou por constrangimento, no caso das tentativas de pressionar generais a aderir ao possível golpe.

A Gazeta do Povo tem condenado e continuará condenando os abusos cometidos pelo Supremo Tribunal Federal na repressão aos atos de 8 de janeiro, especialmente a manutenção desnecessária de prisões preventivas, a violação das garantias constitucionais de ampla defesa dos réus, as denúncias genéricas e as condenações sem provas, ignorando a necessidade da individualização de conduta. No entanto, isso não nos impede de reconhecer, como também já fizemos várias vezes, que muitos dos participantes dos acampamentos montados diante dos quartéis tinham um animus golpista, já que seu objetivo era o de pedir uma “intervenção militar” que alterasse o curso dos acontecimentos, ainda que o fato de muitos brasileiros apoiarem tal ação guiados por uma interpretação equivocada do artigo 142 da Constituição pudesse e devesse servir de atenuante em uma eventual persecução criminal ou mesmo descaracterizar a existência de crime contra o Estado de Direito. A descrição feita pela Polícia Federal e que levou à Operação Tempus Veritatis mostra que esse animus existia não só entre brasileiros comuns, desgostosos com a vitória de Lula, mas também no centro do poder federal.

O fato de termos hoje de volta ao poder os protagonistas de um outro tipo de golpe contra a democracia, tramado e executado por meio da corrupção, não nos autoriza a ser lenientes com quem trabalhou por um golpe “clássico”, na ponta da baioneta. Quem defendeu ou planejou uma ruptura estando plenamente ciente do que defendia ou planejava tem de ser devidamente investigado e punido pelos crimes que porventura tenham sido efetivamente cometidos, mas não pelos meramente cogitados ou planejados. A dúvida que fica, depois do que tem ocorrido com os réus do 8 de janeiro, é se teremos uma investigação realmente criteriosa, capaz de apurar responsabilidades objetivas, ou se estaremos diante de mais um caso de perseguição política e lawfare, usando fatos reais para condenar pessoas por crimes diversos daqueles que tenham sido realmente cometidos ou para punir quem não é golpista, mas está do lado “errado” do jogo de poder.

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