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Praça dos Três Poderes e Esplanada dos Ministérios, em Brasília
Praça dos Três Poderes e Esplanada dos Ministérios, em Brasília.| Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Uma das primeiras lições nos cursos de introdução à Ciência Política é que a democracia significa o poder do povo, pelo povo e para o povo. O nome vem do grego demos (povo) e kratos (poder), para se referir ao regime pelo qual uma comunidade vivendo em determinado território, interagindo entre si nas ações econômicas e sociais, tem sua conduta individual e coletiva pautada por regras obrigadas para todos. Aceita essa ideia, surge o problema de como viabilizar na prática uma instituição que se encarregue de executar as tarefas e serviços a favor da população, segundo os desejos do povo e pagos pelo povo. Em seguida, coloca-se o problema de quem serão os dirigentes e servidores da estrutura que governará a administração dos negócios coletivos (do povo) e como serão escolhidos os nomes que irão compor a máquina pública.

Com a evolução dos tempos, chegou-se à conclusão de que a estrutura deveria ser organizada em três “departamentos”, chamados de “poderes”. Um poder estruturado com pessoas eleitas pelo povo, para escrever as leis e normas desejadas pela comunidade, ou seja, o Poder Legislativo (parlamento). Esse poder representante da população deve ter seus membros escolhidos por meio de eleições livres, com voto secreto, apuração pública e mandato fixo.

Outra estrutura e a instituição executiva, o Poder Executivo (governo), cujos membros têm a função de gerenciar a máquina pública sob regras aprovadas pelo Poder Legislativo, com um grupo de profissionais de carreira escolhidos por meio de concurso público, que devem trabalhar nessa estrutura como empregados do povo (os servidores públicos). Já os dirigentes encarregados de chefiar esse poder de execução (prefeitos, governadores e presidente da República) devem ser escolhidos em eleições livres nos mesmos moldes da eleição para os componentes do Poder Legislativo.

No Brasil, a democracia ainda enfrenta muitos desafios para tornar-se plena, funcionando às vezes de forma incompatível com as definições clássicas

Entre as regras impostas pelo Legislativo (parlamento) ao Executivo (governo) estão a gestão do orçamento público e a arrecadação dos tributos que o povo deve pagar para sustentar os gastos, nos termos aprovados por quem representa o povo, o parlamento. A democracia, para ser compatível com a liberdade e a ordem na vida social, preconiza o terceiro “departamento”, o Poder Judiciário, que deve atuar como fiscal da aplicação das leis, ao qual incumbe processar, julgar e solucionar os conflitos entre os membros da comunidade, inclusive o próprio governo, com poder para punir as condutas ilícitas perante as leis e normas aprovadas pelo Poder Legislativo. Os membros desse poder julgador devem ser escolhidos por um processo diferente: juízes e funcionários judiciários ingressam por concurso e ascendem na carreira, e apenas alguns cargos, como os ministros do Supremo Tribunal Federal (que são ministros, não juízes de carreira) podem ser nomeados por um processo realizado pelos outros dois poderes, Executivo e Legislativo.

A democracia moderna preconiza que os três “departamentos” – Legislativo, Executivo e Judiciário – devem atuar com independência entre si, porém de forma harmônica, sob fiscalização do povo, para quem a estrutura pública (ou estatal) existe e a quem deve obediência. Para fazer jus a esse nome, a democracia exige, então, algumas condições, como liberdade de opinião, liberdade de voto, eleição por voto secreto e apuração pública e transparente, mandato fixo, previsão de remoção dos representantes por conduta ilícita ou inepta, e rodízio de liderança mediante limitação do número de reeleições dos titulares de certos cargos.

Essa introdução conduz à conclusão que, no Brasil, a democracia ainda enfrenta muitos desafios para tornar-se plena, funcionando às vezes de forma incompatível com as definições clássicas. Os desafios são muito mais profundos que a recente controvérsia, por si só bastante prejudicial, sobre a transparência do processo eleitoral. Algumas deficiências são ainda mais relevantes, como o fato de que frequentemente os governantes são eleitos sem que os eleitores saibam o que eles farão, pois, regra geral, eles não assumem compromissos obrigatórios e, quando os assumem, podem deixar de executá-los sem qualquer tipo de punição. Da mesma forma, o sistema de representação pede aprimoramento; mesmo que pesquisas mostrem o que o povo quer e o que não quer, os representantes no Legislativo não têm o menor compromisso com a vontade dos eleitores, o que em parte se explica por um sistema eleitoral, o proporcional, que não favorece o vínculo próximo entre o eleitor e o eleito, além de permitir situações em que, graças ao quociente eleitoral partidário, candidatos podem chegar ao Legislativo com votação inferior à de outros que não serão eleitos. Mesmo entre os políticos existe a crença de que o sistema eleitoral é falho e injusto, tanto que as discussões sobre reforma política estão presentes o tempo todo, em todas as legislaturas.

Especialmente no caso brasileiro, a hipertrofia do Poder Judiciário levou esse poder a se intrometer, modificar, autorizar e eliminar atos dos poderes Legislativo e Executivo, de forma que hoje as funções do governo e do parlamento estão subordinadas às decisões do Judiciário, não só sobre as leis, mas sobre atos políticos e medidas administrativas. Todas as instituições públicas e seus membros devem ser vigiados e fiscalizados pelo povo, submetidos a punições quando praticarem desvios e ilícitos. Mas a forma como o Brasil lida com essa hipertrofia judicial é algo que distorce o conceito de democracia e a vontade popular.

E, como se não bastasse a hipertrofia que se concretiza no avanço do Judiciário sobre os demais poderes, recentemente o Supremo Tribunal Federal vem se portando como se estivesse acima até da própria Constituição. Inúmeras decisões tomadas no âmbito de inquéritos que nem mesmo deveriam existir, como o das fake news, têm violado sistematicamente cláusulas pétreas como a liberdade de expressão, instituindo censura ou desrespeitando outras garantias, como a imunidade parlamentar. A restauração plena da liberdade de expressão no Brasil, corretamente compreendida, é hoje a maior das prioridades do país.

Por fim – e sem esgotar os desafios da democracia brasileira –, o aparato estatal nos três poderes e nas três esferas da federação (União, estados e municípios) acabou se distanciando do povo de tal forma que há castas de privilegiados e corporações que dominaram as estruturas públicas e agem com liberdade para aprovar seus próprios salários, fixar seus aumentos, conceder benefícios próprios, dar-se aposentadorias muito maiores que as da população privada, tudo sem que o povo pagador dessa conta nada possa fazer para impedir o aparelhamento e apropriação de recursos, cargos e estruturas governamentais a favor dos interesses de seus próprios membros. A isto pode-se somar o alto nível de corrupção envolvendo o dinheiro público – isto é, dinheiro das pessoas e empresas pagadores de impostos –, que constitui doença debilitadora da própria democracia. São distorções, vícios e deformações que não são privilégio de um único partido nem de um único segmento político, mas pragas gerais que sempre existiram e contaminaram praticamente todas as instituições.

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