Na última terça-feira, dia 9, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal manteve uma liminar do ministro Ricardo Lewandowski que permitiu à defesa do ex-presidente Lula acesso às supostas mensagens atribuídas a procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato e o então juiz Sergio Moro. O material era resultado da Operação Spoofing, que investigou ataques de hackers contra celulares de autoridades, e os advogados do ex-presidente pretendiam usar as supostas conversas para conseguir a anulação da condenação de Lula por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá, em 2017. A decisão da Segunda Turma, ainda que defensável por alguns ângulos, também tem uma série de outros aspectos bem preocupantes e mostra que algumas discussões importantes a respeito do material apreendido ainda não foram feitas.
A Segunda Turma estava analisando um pedido de procuradores da força-tarefa para que a defesa de Lula não tivesse acesso às supostas mensagens, e o resultado derivou de uma questão meramente processual: quatro ministros entenderam que os procuradores não tinham legitimidade para propor aquela ação, e por isso a rejeitaram. Mas os ministros também acabaram entrando em outras questões, como a chamada “paridade de armas” no processo penal – a necessidade de todas as partes estarem em igualdade de condições para que ocorra uma decisão justa. Neste sentido, compreende-se a indagação de Cármen Lúcia, que normalmente vota ao lado de Edson Fachin nos casos da Lava Jato, mas desta vez ajudou a formar a maioria, com Lewandowski, Gilmar Mendes e Kassio Nunes Marques. “A Polícia Federal, que é órgão de Estado, tem acesso aos dados. O Ministério Público tem acesso aos dados. O juiz tem acesso aos dados. E a defesa não tem acesso aos dados?”, questionou a ministra.
Discussão sobre acesso de Lula a mensagens obtidas por hackers pulou etapas, como a avaliação da autenticidade do material e do seu interesse público
Mas só foi possível a Cármen Lúcia fazer esse tipo de pergunta porque outras controvérsias ligadas ao material da Operação Spoofing ainda não foram enfrentadas pela corte, a começar pela própria caracterização dos supostos diálogos como prova lícita, já que são provenientes de uma violação gravíssima da privacidade das autoridades hackeadas. Além disso, ainda que a jurisprudência admita o uso de provas obtidas ilegalmente quando se trata de beneficiar o réu, continua a haver dúvidas sobre a autenticidade das mensagens hackeadas, já que a perícia da Polícia Federal não foi capaz de mostrar que os diálogos ocorreram exatamente como constam nos arquivos apreendidos com os hackers. Se já houvesse definição sobre a impossibilidade de uso desse material em processos, a “paridade de armas” estaria estabelecida sem que houvesse necessidade de acesso da defesa de Lula, pois nenhuma das partes poderia usá-lo.
Igualmente preocupante foi a ausência da definição do interesse público envolvido nos supostos diálogos. A invasão dos celulares de autoridades proporcionou aos hackers acesso a uma infinitude de dados que jamais deveriam se tornar públicos. De tudo o que foi levantado pela Operação Spoofing, os únicos conteúdos que poderiam ter interesse público são as conversas entre Moro e integrantes da força-tarefa – caso sejam autênticos, o que sempre será preciso ressaltar –, pois até mesmo os diálogos entre os procuradores estão (ou deveriam estar) resguardados pelo sigilo funcional e dizem respeito apenas a eles próprios; para se ter ideia da gravidade de sua eventual divulgação, basta inverter a situação: se os advogados de Lula tivessem sido hackeados, a exposição das conversas em que traçam a estratégia de defesa seria igualmente nociva.
Foi assim, sem critérios claros, que Lewandowski provavelmente colocou nas mãos da defesa de Lula muito mais do que deveria ou poderia. Na liminar de dezembro de 2020, o ministro determinou “o compartilhamento das mensagens arrecadadas pela Operação Spoofing que lhe digam [a Lula] respeito, direta ou indiretamente, bem assim as que tenham relação com investigações e ações penais contra ele movidas na 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba ou em qualquer outra jurisdição, ainda que estrangeira”, ou seja, sem se limitar às supostas conversas entre Moro e os procuradores, o que já é grave.
Ainda mais preocupante é o que se depreende do trecho que se segue: “Considerando que os arquivos arrecadados compreendem cerca de 7 TB de memória, envolvendo inclusive terceiras pessoas, advirto que os dados e informações concernentes a estas deverão permanecer sob rigoroso sigilo”, escreveu Lewandowski. Ou seja, nos casos em que as conversas tratam de Lula, mas também de outras pessoas, parece não ter havido uma triagem prévia de modo que a defesa do ex-presidente recebesse única e exclusivamente as falas que lhe dissessem respeito; os advogados teriam acesso ao material completo, e Lewandowski estaria confiando na discrição de Lula e seus advogados quanto a tudo aquilo que trata de terceiros.
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Essa impressão é reforçada pelos argumentos da subprocuradora-geral da República, Cláudia Sampaio, e do ministro Edson Fachin, que foi voto vencido. “O eminente ex-presidente da República tem farto material sem qualquer limitação, que não diz respeito a ele e não podem ser usados em seu direito de defesa. (...) O ex-presidente tem materiais relativos a opositores políticos. O uso que ele vai fazer disso aparentemente não interessa à Justiça. Material envolvia mensagens pessoais, não atividade funcional. Conversas de famílias, de amigos, de todas as autoridades”, afirmou Cláudia Sampaio. Fachin afirmou que há até mesmo informações sobre crianças no material ao qual a defesa de Lula passou a ter acesso. Ora, se efetivamente é isso que ocorreu, sem nenhuma triagem prévia à entrega do material, com a consequente exposição de muitas outras pessoas além das autoridades hackeadas, estaríamos diante de um abuso grotesco, motivo suficiente para se atestar o equívoco da decisão de terça-feira.
Em algum momento o Supremo terá de se debruçar sobre a legitimidade do material da Operação Spoofing e a possibilidade de seu uso nos processos envolvendo Lula. Será um erro simplesmente presumir sem maiores discussões sua autenticidade e o interesse público dos supostos diálogos, mas infelizmente é o que já vem ocorrendo, a julgar pelas declarações de membros da Segunda Turma como Lewandowski e, especialmente, Gilmar Mendes, incapazes de fazer uma leitura desapaixonada do conteúdo apreendido. Que outros membros da corte tenham a sabedoria de impedir que uma bola de neve de equívocos, omissões e abusos coloque a perder a maior e mais bem-sucedida operação de combate à corrupção da história do Brasil.
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