Entre as certezas do Brasil atual está a de que, não importa quão bem feito seja o trabalho da primeira e segunda instâncias em ações que digam respeito à Lava Jato, sempre haverá algum tribunal superior disposto a desfazê-lo. A regra acaba de ser cumprida mais uma vez com a decisão velocíssima do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que reverteu entendimento da Justiça Federal em Curitiba e do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, e permitiu que o Tribunal de Contas da União (TCU) volte a perseguir o ex-procurador Deltan Dallagnol, cobrando-lhe valores exorbitantes a título de ressarcimento de despesas sobre as quais ele não teve responsabilidade alguma.
No início de junho, a 6.ª Vara Federal de Curitiba havia concedido liminar suspendendo a “tomada de contas especial” (TCE) que resultou na cobrança de R$ 2,8 milhões. O juiz Augusto César Pansini Gonçalves afirmou haver “razoáveis indícios de que é ilegal a tomada de contas especial instaurada pelo TCU”, já que “a TCE não poderia se voltar contra alguém (...) que não exerceu papel algum como ordenador de despesas e nem sequer arquitetou o modelo de pagamento das diárias e passagens dos colegas integrantes da força-tarefa relativa à denominada ‘Operação Lava Jato’”. Apenas esse fato já seria suficiente para que o processo no TCU nem devesse existir, mas Gonçalves ainda acrescentou outros elementos que tornam todo o episódio ainda mais distante da normalidade legal.
Não importa quão bem feito seja o trabalho da primeira e segunda instâncias em ações que digam respeito à Lava Jato, sempre haverá algum tribunal superior disposto a desfazê-lo
O juiz recordou, por exemplo, que o ministro Bruno Dantas, do TCU, seguiu adiante na tentativa de punir Dallagnol apesar de a Secretaria de Controle Externo da Administração do Estado (SecexAdministração), órgão de instrução técnica do TCU, ter afirmado que não havia irregularidade nos pagamentos. Além disso, Dantas ainda colocou o processo em pauta antes que fosse concluída uma nova rodada de levantamento de informações solicitada por ele mesmo, e “resolveu, por sua própria iniciativa, quantificar a dívida ao Erário, sem considerar que o órgão de instrução técnica do TCU ainda não havia apurado a ‘diferença entre os custos com diárias e passagens e aqueles que teriam sido despendidos caso fosse realizada a remoção de interessados para atuar na força-tarefa da Lava Jato’”, segundo o texto da liminar. Por fim, Gonçalves ainda lembrou que Dantas, “antes mesmo de levá-lo à apreciação colegiada (na verdade, antes mesmo da instauração da TCE), pareceu prejulgar o caso, e em termos peremptórios, denotando, com esse comportamento, uma suposta falta de impessoalidade”, como em despacho de novembro de 2021 no qual o ministro imputou “aos investigados, sem meias-palavras, a pecha de malversadores de recursos públicos”.
A União, então, recorreu da decisão de primeira instância, mas foi derrotada também no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4), cujo presidente manteve a liminar da primeira instância afirmando que não havia qualquer lesão ao interesse público em manter suspenso o processo até que a Justiça pudesse analisar o mérito da ação movida por Dallagnol contra a cobrança. No entanto, apenas dois dias depois, o presidente do STJ, Humberto Martins, derrubou a liminar afirmando que “está caracterizada a lesão à ordem pública na medida em que a decisão judicial impugnada, sem a demonstração inequívoca de ilegalidade, obstou o trâmite e o pleno funcionamento autônomo e independente da atuação fiscalizatória do Tribunal de Contas da União”.
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É preciso recordar que Martins – cujo filho foi citado em uma delação premiada, denunciado e tornado réu na Lava Jato, em processo suspenso pelo STF em 2020 – já abriu um inquérito abusivo contra Dallagnol e outros membros da hoje extinta força-tarefa da Lava Jato; para isso, precisou atropelar a Constituição, pois a investigação foi aberta com base nas supostas mensagens trocadas entre os procuradores, cuja autenticidade jamais foi comprovada e que foram obtidas por meio de um crime, o que as tornaria inválidas como prova de acusação ainda que os diálogos fossem verdadeiros. O inquérito só foi arquivado porque, de fato, não se encontrou indício de nenhuma atividade ilícita de algum membro da Lava Jato. O processo do TCU aparece como uma nova oportunidade de fustigar Dallagnol, e chega a ser incrível que o presidente do STJ afirme não ter havido “demonstração inequívoca de ilegalidade” apesar de todos os elementos invocados pelo juiz Augusto César Pansini Gonçalves, comprovando que tal processo jamais poderia ser movido contra Dallagnol, que sua condução atropelou uma série de etapas e que o comportamento de seu relator demonstrou enorme falta de impessoalidade. Aliás, se não tivesse se precipitado, Dantas teria tido tempo de receber uma resposta da Procuradoria-Geral da República, datada de 30 de maio, atestando que o modelo de força-tarefa escolhido para investigar o petrolão “foi o mais econômico dentre os possíveis” e que “em nenhum momento ele [o princípio da economicidade] foi violado; pelo contrário, ele foi respeitado durante todo o funcionamento da FTLJ [Força-Tarefa Lava Jato]”. Ou seja, não houve irregularidade nem desperdício.
Esta fase da desconstrução da Lava Jato – aquela em que é preciso desmoralizar os agentes públicos que a conduziram, investigando e condenando os corruptos – tem sido marcada pelo completo vale-tudo, desde o uso de evidência ilegal contra procuradores e juízes até a imputação de irregularidades inexistentes a quem nem sequer poderia ter sido responsável por elas, caso tivessem sido reais. O processo do TCU tem todas as características de perseguição, uma tentativa desesperada de finalizar o que instâncias como o Conselho Nacional do Ministério Público começaram quando puniram Dallagnol por “crimes de opinião”. E perseguição consentida pelos altos escalões do Judiciário em Brasília, apesar do bom trabalho técnico feito nas instâncias inferiores, que ainda terão de analisar o mérito da ação de Dallagnol e poderão, mais uma vez, frear a arbitrariedade do TCU – aí reside a esperança de que a justiça prevaleça ao menos neste caso.