Procurador-geral da República, Augusto Aras, propôs limitar delações premiadas negociadas pela Polícia Federal.| Foto: Lula Marques/Fotos Públicas
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Deflagrador de uma ofensiva contra a Lava Jato, o procurador-geral da República, Augusto Aras, sugeriu recentemente ao Supremo Tribunal Federal (STF) que altere as regras que permitem à Polícia Federal (PF) negociar acordos de colaboração premiada. Segundo a proposta de Aras, delações só poderiam ser homologadas com a concordância do Ministério Público Federal (MPF). Na prática, isso limitaria a autonomia da PF, que até poderia negociar o acordo, mas ficaria submetida à decisão final do MPF.

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A possibilidade de a PF fechar delações com investigados, sem participação do Ministério Público, foi motivo de controvérsia entre as duas instituições até que, em 2018, o Supremo decidiu autorizar os acordos firmados pela polícia.

A sugestão de Aras, passados apenas dois anos dessa decisão do STF, levantou suspeitas mesmo entre procuradores que são contra as delações fechadas pela PF. Aras está numa investida institucional contra a Lava Jato e em busca de concentrar poderes nas mãos da Procuradoria-Geral da República (PGR). A Associação dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) também criticou a sugestão do procurador-geral.

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Segundo o jornal O Globo, a manifestação de Aras foi feita ao pedir o arquivamento de inquéritos abertos com base na delação de Sérgio Cabral (MDB), ex-governador do Rio de Janeiro. A colaboração premiada de Cabral foi firmada diretamente com a PF. Foi a primeira vez que a PGR se recusou a tocar investigações originadas em acordos celebrados pela Polícia Federal.

A ADPF é contra limitar a autonomia da PF para fechar delações. Para o presidente da entidade, o delegado Edvanir Paiva, a sugestão de Aras “não tem o menor cabimento” e não está prevista na legislação. Ele ressalta que o STF já decidiu sobre o tema em 2018. “Vamos retomar esse assunto toda vez que o MP não concordar com uma delação?”

Paiva ressalta, ainda, que a colaboração premiada é um instrumento de investigação. “Em todas as medidas de investigação, como prisões e buscas e apreensões, o MP é ouvido, mas não há vinculação da opinião do MP”, destaca. Mesmo que o Ministério Público não concorde, a Justiça pode determinar medidas pedidas pela PF. “O MP não pode querer ser dono dos instrumentos de investigação, afinal a investigação é a atividade precípua da polícia”, finaliza Paiva.

Mas a visão dos delegados não é unanimidade dentro da PF. Antes da decisão do STF, a Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) se posicionou contra os acordos de delação fechados pela PF. Agora, a entidade disse apoiar o posicionamento de Aras, “desde que isso não signifique mais burocracia nas investigações ou gasto de tempo e que todos os investigadores na PF possam iniciar acordos de delação”.

Desde a decisão do Supremo, em 2018, a PF fechou oito delações com investigados que foram homologadas pelo STF. Entre elas estão as delações de Cabral, do ex-ministro Antônio Palocci e do publicitário Duda Mendonça.

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Enquanto isso, o procurador-geral não teve nenhuma delação homologada pelo STF. O acordo fechado por Augusto Aras com o empresário Eike Batista foi rejeitado pela ministra Rosa Weber, que determinou correções em algumas cláusulas.

Sugestão é vista com desconfiança por procuradores

Mesmo membros do Ministério Público Federal (MPF) que são contra a PF ter autonomia para fechar acordos de colaboração premiada desconfiam das intenções de Aras ao sugerir mudanças no procedimento.

Procuradores ouvidos pela Gazeta do Povo afirmaram que a sugestão de Aras “gera estranheza”. Eles também destacam a tentativa de concentração de poder nas mãos do procurador-geral, uma vez que acordos em que investigados delatam políticos com foro precisariam, necessariamente, passar pelo aval dele caso o STF altere o entendimento.

A desconfiança é motivada pela recente ofensiva da PGR contra a Lava Jato e outras forças-tarefas do país. Além de tentar enfraquecer os grupos publicamente, Aras tem adotado medidas que visam dar a ele acesso a bancos de dados das investigações e acesso a procedimentos sigilosos do MPF. Membros do MPF temem que as informações possam ser usadas politicamente por Aras para favorecer o presidente Jair Bolsonaro.

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“No momento político está provado que não é adequado [mudar o entendimento do STF]. Tem que abrir as possibilidades de colaboração, não tem que superempoderar o PGR”, disse um procurador ouvido pela reportagem.

Ex-integrante da Lava Jato, o procurador aposentado Carlos Fernando Lima ressaltou, em entrevista à Gazeta do Povo, que sempre foi contra a possibilidade de a PF firmar os acordos, mas vê a movimentação de Aras com desconfiança.

“Eu creio que a posição intermediária manifestada pelo procurador-geral está tecnicamente mais na direção de garantir que o titular do direito de acusar, que é o Ministério Público, exclusivamente, tenha participação nessa decisão. Mas neste momento atual eu duvido das boas intenções do procurador-geral”, disse Lima. “Neste momento, o que me parece, é um desejo, dentro dessa campanha contra o lavajatismo, de que se retorne a um certo controle de colaborações que envolvam pessoas politicamente relevantes”, completou.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Acordos fechados pela PF causam divergências entre procuradores

Mesmo dentro do MPF há divergências sobre os acordos de delação firmados pela PF. Em 2016, Carlos Lima defendia que apenas o MPF deveria fechar delações premiadas. Para ele, é um “risco excessivo” dar à autoridade policial o poder de negociar o benefício.

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“É um risco excessivo de uma pressão indevida, porque ele [policial] já tem a custódia dos presos e ele é um poder armado. Os poderes armados devem se submeter a regras mais rígidas de disciplina. Então é um problema muito grande na mão de uma instituição que é a polícia, que não tem uma uniformidade muito grande para isso”, disse em entrevista à Gazeta do Povo à época.

Já membros da força-tarefa da Operação Greenfield, que investiga corrupção em fundos de pensão de estatais, têm uma visão diferente. Para eles, é importante que a PF possa firmar acordos justamente para garantir que investigados e pessoas interessadas em fazer denúncias tenham mais de um caminho para chegar aos investigadores.

Se apenas o MPF for autorizado a firmar acordos, na visão da força-tarefa da Greenfield, o procurador-geral da República acaba com muito poder concentrado nas mãos, decidindo quais investigações contra figuras políticas poderão ou não caminhar.

Os procuradores da Greenfield também destacam que, como a possibilidade de colaborar com investigações é um direito subjetivo e uma sanção premial, o que importa é que haja possibilidade de fechar acordos, independentemente de ser com a PF ou o MPF.

Em 2016, o então procurador-geral Rodrigo Janot argumentou que são inconstitucionais os trechos da Lei das Organizações Criminosas que permitem à PF celebrar esse tipo de acordo com investigados. Para Janot, isso viola o devido processo legal e o sistema acusatório. Segundo o ex-procurador-geral, a Constituição Federal dá ao Ministério Público a tarefa de conduzir as apurações. Portanto, somente o MPF poderia negociar benefícios para os delatores, como o perdão judicial ou a redução da pena em caso de condenação. A argumentação não foi acatada pela maioria do STF.

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